DOSSIÊ ENTREVISTA

O pleito pela equidade de gênero começou séculos atrás e ainda hoje se faz necessário. A pesquisadora Tânia Fontenele resgata marcos históricos da luta feminina por cidadania, igualdade de direitos e de oportunidades na carreira profissional

 

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A cineasta Tânia Fontenele é pesquisadora de história oral de mulheres e doutoranda em História Cultural, Memórias e Identidades pela UnB e pela Universidade de Montreal (Canadá). Foto: Arquivo pessoal.

 

Texto: Vanessa Vieira

 

Figura carismática e cordial, quando convidada para discorrer sobre desigualdade de gênero no mercado de trabalho à revista Darcy, Tânia Fontenele logo avisou: "Posso falar desse tema por dias. O desafio será sintetizar todo o meu ‘blá blá blá’". Verdade seja dita: para além de seu modo extrovertido e comunicativo, ela carrega a experiência de quem estuda, pesquisa e realiza trabalhos sobre mulheres há décadas.

 

O filme documentário Poeira & Batom no Planalto Central: 50 mulheres na construção de Brasília é possivelmente seu projeto mais conhecido, nascido da vontade de contar histórias sobre a edificação da capital do Brasil a partir de narrativas femininas. "Na história de Brasília, só se falava dos homens: Juscelino Kubitscheck, Oscar Niemeyer, Lucio Costa, os candangos. Cadê as mulheres? Por que não dar voz a elas?", instiga a brasilense e pesquisadora de história oral de mulheres. A produção foi traduzida para inglês, francês e espanhol, e está disponível no canal da UnBTV no YouTube. O projeto também rendeu um livro homônimo, publicado em 2010.

 

Quando perguntada sobre sua trajetória profissional, ela responde com humor: "deixei de ser economista para virar ‘mulheróloga’ e cineasta", citando a descrição que lhe foi atribuída por uma amiga docente. Doutoranda em História Cultural, Memórias e Identidades pela Universidade de Brasília e pela Universidade de Montreal (Canadá), Tânia Fontenele também realizou estudos sobre poder e liderança de mulheres em institutos da Inglaterra e Canadá. Em Brasília, fundou o Instituto de Pesquisa Aplicada da Mulher (Ipam).

 

À revista Darcy, ela destacou processos históricos e sociais que estigmatizaram o lugar do feminino no mundo. A especialista traz seu olhar sobre disparidade de gênero no mercado de trabalho e invisibilidade feminina, além de apontar caminhos para mais equidade social.

 

Darcy – Quais são marcos importantes da inserção da mulher no mercado de trabalho?

Tânia Fontenele – Para abordar a temática, há uma discussão imprescindível, que é sobre o espaço das mulheres na sociedade. As mulheres sempre trabalharam muito, mas ao longo da história foi imposto que seu lugar seria dentro de casa, no âmbito privado. É um constructo muito marcante sobre como as mulheres foram permitidas, ao longo de séculos, a participar socialmente.

 

Em termos de direitos, somente no final do século XIX e começo do século XX, iniciam-se as discussões para permitir sua participação cidadã. Até então, elas não podiam ser alfabetizadas ou ter direito à voto. Em 1872, a britânica Mary Wollstonecraft escreveu a obra Uma Reinvindicação pelos Direitos da Mulher, documento muito importante na luta pelos direitos femininos.

 

No Brasil, essas lutas por inserção social foram acontecendo lentamente. Porém, cabe ressaltar o protagonismo de mulheres como Nísia Floresta. Embora não seja considerada feminista nos moldes de hoje, ela foi precursora na defesa dos direitos da mulher, lutou pela abolição da escravatura e em prol da liberdade religiosa. Isso em uma época em que só homens brancos e de elite tinham direitos fundamentais, como a educação e o voto, garantidos. Aos 28 anos, foi vanguardista por criar uma escola para meninas – foi em 1838, no reinado de Dom Pedro II, quando o ditado popular "o melhor livro é a almofada e o bastidor" representava a realidade do período.

 

No mercado de trabalho formal, a maior inserção feminina acontece por conta da Revolução Industrial. O economista Leo Huberman, em História da Riqueza do Homem, retrata as condições precárias de trabalho em que mulheres e crianças paupérrimas, muito magras e fracas, eram contratadas para trabalhar em fábricas sujas, situadas em porões com condições insalubres. Seus bracinhos finos eram usados para desemperrar as máquinas rústicas do período, o que resultou em muitas mãos e braços decepados. Não havia nenhum tipo de proteção social. Eram condições de trabalho absolutamente insalubres.

 

São muitos os relatos de incêndios nos porões das fábricas que ocasionaram a morte de mulheres e crianças. Um desses episódios é relembrado como marco que culminou com a instituição do Dia Internacional da Mulher, para evidenciar as lutas femininas e denunciar as dificuldades para a maior inserção das mulheres no mercado de trabalho, os desrespeitos e as condições precarizadas.

 

Com os homens indo para o front de batalha durante a primeira e a segunda guerras mundiais, faltou mão de obra no mundo capitalista, possibilitando a inserção da mulher no mercado de trabalho. Elas foram inseridas ganhando salários reduzidos, mais atreladas à produção fabril.

 

Darcy – E no Brasil, quais foram as lutas das mulheres para conquistar esse espaço?

TF – Depende de qual mulher estamos falando. É mulher branca, negra, escrava, indígena? As mulheres negras sempre trabalharam muito e de forma invisibilizada. Imagine a realidade de uma mulher escrava no Brasil, um dos países onde perdurou por mais tempo o sistema escravocrata, com um contingente de pessoas trazidas da África que chega a ser algo inominável.

 

Nosso país foi muito marcado por esses dois pilares: o patriarcado e a escravatura. Isso me remete a um quadro muito bonito e simbólico do Debret [Jean-Baptiste Debret]: sentada no sofá, uma mulher branca, a "sinhá", está costurando; no banco à sua frente, a filha faz uma atividade de leitura; sentadas no chão, duas mulheres negras, possivelmente escravas, fazem atividades manuais, com crianças negras brincando ao seu redor; na entrada do cômodo, outra mulher negra está com uma jarra para servir a sinhá. É um retrato da vida cotidiana de mulheres no Brasil Colônia, com a distinção de raça e de classe bem evidente.

 

A raiz escravocrata permanece, e as desigualdades se fazem visíveis. No caso das mulheres negras, estas ingressam ainda mais cedo no mercado de trabalho e são as que mais tardiamente podem sair dele. Paradoxalmente, são as mais afetadas pelas taxas de desemprego, recebem salários menores e, em sua maioria, são absorvidas no setor de serviços, pois em geral não tiveram acesso à educação de qualidade. Mais do que as outras mulheres, vivenciam relações desiguais marcadas por ausência de proteção, subordinação e violações de direitos.

 

É fato que nas últimas décadas ocorreram mudanças significativas na sociedade brasileira, melhorando, inclusive, as condições socioeconômicas, culturais e políticas da população pobre e negra. Cresce a consciência de direitos e o exercício da cidadania, o empenho da sociedade civil no fortalecimento da democracia participativa e lutas por nenhum direito a menos. No entanto, não obstante esses avanços, ao longo da história as mulheres, sobretudo as pobres e negras, têm sido e continuam sendo as maiores vítimas de disparidades de gênero.

 

Darcy – No contexto atual, o que significa falar sobre disparidade de gênero no mercado de trabalho?

TF – Ainda prevalecem diversos arranjos sociais ou familiares prejudiciais. É o caso da chamada tripla jornada, em que mulheres trabalham fora durante o dia e à noite assumem todas as responsabilidades do lar. Embora a divisão do trabalho doméstico seja uma pauta antiga, as mulheres dedicam mais tempo a essas tarefas do que os homens.

 

Outro exemplo é que hoje, por lei, as empresas não podem demitir mulheres grávidas. Mas ainda existe uma cultura obscura de, por conta da gravidez, dar preferência à contratação de homens. A maternidade também tem impacto em suas carreiras, a exemplo das mulheres que precisam largar o emprego por não conseguirem vaga em creches públicas para seus filhos.

 

Esses são alguns dos indicadores que retratam disparidades de gênero presentes na estrutura social do país. Com a pandemia, as desigualdades foram ampliadas. Se antes as mulheres já eram sobrecarregadas, agora estão ainda mais. Além disso, muitas precisaram sair do mercado de trabalho, por não terem com quem deixar os filhos, já que as escolas públicas estão com o ensino a distância.

 

Darcy – Uma de suas publicações é intitulada Trabalho de mulher: mitos, riscos e transformações. A expressão "trabalho de mulher" confirma a existência de uma segmentação no mercado de trabalho e de um estigma sobre o papel social das mulheres?

TF – As mulheres estão muito ligadas a profissões relacionadas ao cuidado, como nas áreas de saúde, recursos humanos, educação básica. Quando pesquisei sobre mulheres no topo de carreira, mesmo na área da educação básica, em que elas são maioria, encontrei pouquíssimas nesse patamar. Na época [2016], eram só 12%, hoje estão em torno de 40%. Isso nos mostra a segmentação no mercado de trabalho.

 

Há uma regulação muito forte do papel social das mulheres: elas têm que ser recatadas e estar de acordo com as regras impostas pela sociedade. Existe uma ideia de que a mulher honesta é aquela que não se expõe, entre outros milhões de rótulos que causam sofrimento às mulheres. Os homens também sofrem com esses estigmas: se o cara faz ioga, é ‘mariquinha’; eles não podem ser sensíveis, chorar ou se responsabilizar pela casa. São preconceitos que impedem as relações de frutificar e nos impede de desfrutar de um mundo mais tranquilo. Precisamos de mais amor, respeito e de ver homens e mulheres se alavancando.

 

Darcy – Quais soluções devem ser adotadas no Brasil para diminuir a disparidade de gênero no mercado de trabalho?

TF – Algo basilar para o país avançar é investir em educação de qualidade para todos. A formação deve incluir discussões de gênero, refletir sobre as desigualdades, as taxas de violência e de feminicídio. É preciso ensinar para meninos e meninas sobre respeito e diálogo. É preciso ensinar sobre a diversidade cultural do nosso país, formado por quilombolas, indígenas, e brasileiros de regiões com enormes e lindas diferenças culturais.

 

É preciso um aparato público com creches e escolas integrais para as crianças. As empresas também podem investir em creche para os filhos de seus colaboradores. A mãe que vai para o mercado de trabalho sabendo que seu filho está bem cuidado e alimentando tem segurança e condições favoráveis para se desenvolver profissionalmente.

 

Toda a minha educação básica foi em escolas públicas. Tive aulas de música, idiomas, carpintaria, costura, teatro. É disso que precisamos, que todos tenham acesso à educação pública de qualidade. Isso muda definitivamente as oportunidades. Quanto mais educação ofertamos, mais condições as mulheres terão de fazer melhores escolhas: no âmbito familiar, no respeito ao outro, na participação social. Meninos e meninas precisam conversar sobre respeito, igualdades, medidas contra a violência e contra o preconceito.

 

Infelizmente considero que estamos numa curva de retrocesso na educação e na cultura, com muitos direitos sendo ameaçados. Mais do que nunca é importante não perdermos a esperança, formarmos redes solidárias para alcançar, com nossas pequenas ações, aqueles que precisam de ajuda.