REPORTAGEM

Pesquisadores da UnB, em parceria com instituições do país e do exterior, desenvolvem produtos nanobiotecnológicos a partir de uma substância presente na goiaba vermelha. Descobertas são aplicadas na áreas medicinal

 

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Etapas da Pesquisa Nano Guava

Esquema à esquerda ilustra três etapas da pesquisa: 1) A goiaba vermelha, matéria-prima de onde é extraído o licopeno; 2) Representação do produto nanoestruturado com licopeno em seu interior. 3) Representação de célula de câncer de mama sendo destruída pelas nanopartículas. Imagens à direita são: 1) Nanopartículas vista por microscopia eletrônica de transmissão; 2) Células de câncer de mama sob o efeito das nanopartículas vistas por microscopia óptica. Imagem: Arquivo do projeto

 

Texto: Secretaria de Comunicação

 

Apreciada mundo a fora, a goiaba é uma fruta típica brasileira. Sabor peculiar, aroma agradável e elevado valor nutricional são qualidades que a fazem ser consumida in natura ou em diversas preparações. Sua árvore, a goiabeira, é nativa da América do Sul, e se espalhou pelo mundo após ser levada, séculos atrás, por navegantes europeus para colônias africanas e asiáticas.

 

Quem não gosta das gosta do sabor da fruta, tem outros motivos para apreciá-la. Pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em Morfologia e Imunologia Aplicada da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB) desenvolveram o Nano Guava, produto nanobiotecnológico com potencial anticâncer, em especial contra câncer de mama, obtido de uma substância presente na goiaba vermelha, o licopeno.

 

Denominado de carotenoide, o licopeno é um pigmento responsável pela cor avermelhada de alimentos, como a acerola, o tomate e a melancia. Ele é um potente antioxidante, ou seja, quando absorvido pelo organismo, ajuda a impedir e a reparar danos causados às células pela ação de radicais livres.

 

Coordenador da pesquisa e professor da Faculdade de Medicina da UnB, José Roberto Leite explica que as propriedades medicinais do licopeno, especialmente no tratamento de câncer de próstata, já são bem conhecidas. O diferencial do estudo da UnB é a obtenção da substância a partir da goiaba.

 

"O licopeno disponível comercialmente é encontrado no tomate, principalmente em frutos geneticamente modificados e em variedades importadas, o que aumenta o custo de desenvolvimento no Brasil de produtos com a substância", esclarece o docente sobre a pesquisa que levou anos até "desenvolver um método de obtenção o licopeno a partir da goiaba".

 

Tendo em vista que os oxidantes são muito sensíveis à luz e à temperatura ambiente, um diferencial do produto é a "formulação nanotecnológica que permite aumentar sua estabilidade e seu tempo de prateleira, isso porque as nanocápsulas o protegem", acrescenta o coordenador.

 

A biomédica Andreanne Vasconcelos, aluna do doutorado em Ciências Médicas da Universidade de Brasília e primeira autora do projeto, ressalta a importância de pesquisas voltadas à biodiversidade e bioeconomia. "Utilizar a goiaba vermelha, matéria prima abundante no Brasil, agrega valor ao fruto, aplicando-o na geração de produtos nanobiotecnológicos, com cadeia produtiva sustentável, e contribuindo para a economia e desenvolvimento regional".

 

Outro benefício é evitar desperdício. "Utilizamos as frutas em alto grau de maturação, justamente aquelas destinadas ao descarte por apresentarem características organolépticas menos atraentes e de baixo valor comercial", acrescenta a doutoranda.

 

A pesquisa integra um projeto maior, também denominado Nano Guava, que visa desenvolver novas aplicações para a substância, como produtos na área dermatológica. Também estão sendo realizados experimentos sobre o potencial da formulação contra outros tipos de tumor, para além do câncer de mama.

 

Ciência em prática

O estudo envolveu três etapas. Primeiro foi obtido o extrato da fruta em alto grau de maturação. Em seguida, foi desenvolvida a formulação para solubilizar o licopeno extraído da goiaba. A solução foi composta de nanopartículas, ou seja, partículas de tamanho equivalente a um bilionésimo de metro. Por último, o produto foi testado em células normais e em células com câncer de mama.

 

As frutas foram obtidas de fazendas na região do Baixo Parnaíba, no Piauí. Isso porque as goiabas do nordeste brasileiro, em especial as dos Tabuleiros Litorâneos de Parnaíba, tiveram os melhores desempenhos no estudo. Parceiro da UnB no projeto, o Núcleo de Pesquisa em Biodiversidade e Biotecnologia (Biotec) da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar) foi responsável por selecionar a matéria-prima e por obter o extrato ativo.

 

Após serem colhidas, as goiabas são transportadas para a Faculdade de Medicina da UnB, onde permanecem congeladas para uso na pesquisa. Da goiaba ao licopeno purificado (chamado de ativo farmacológico natural) existem várias etapas de extração química e física sob sigilo de patenteamento. O trabalho testou três formulações líquidas para estabilizar o licopeno, sendo escolhida a solução com melhor desempenho nos ensaios anticâncer e anti-inflamatórios.

 

José Roberto Leite explica que a tecnologia adotada é chamada de nanopartícula lipídica polimérica, por possui um polímero (macromolécula) que protege o ativo instável. "O produto final que sai da UnB é chamado nanointermediário ou formulação nanotecnológica. A partir disso, empresas farmacêuticas fazem a formulação final como uso tópico ou oral".

 

A pesquisa teve apoio de institutos da Universidade de Lisboa e da Universidade do Porto, ambas em Portugal. O financiamento contou com duas empresas de base tecnológica: a brasileira MEDLIG, em Barretos (SP); e a portuguesa Bioprospectum, ligada ao Parque Tecnológico da Universidade do Porto.

 

"O apoio internacional foi vital na fase de caracterização do material, envolvendo uso de microscopia avançada, com a realização de experimentos em modelos de células humanas visando comprovar o potencial antioxidante do produto", garante o docente da UnB sobre as tecnologias de difícil acesso e alto custo no país.

 

Resultado promissor

Segundo Andreanne Vasconcelos, a literatura científica tem comprovado a ação de compostos antioxidantes na prevenção de doenças cujo estresse oxidativo faz parte de sua etiopatogênese, ou seja, da origem da patologia. É o caso de doenças cardiovasculares, neurodegenerativas, inflamação crônica, diabetes, diversas infecções e câncer.

 

"Esses compostos bioativos estão presentes nos alimentos em quantidades relativamente pequenas. Por isso, a importância de tecnologias que permitam a extração, concentração e estabilização de suas moléculas para aplicações na indústria farmacêutica, cosmética e de alimentos", esclarece a biomédica.

 

No Brasil, segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), o câncer de mama é o tipo de tumor que mais acomete mulheres (excluídos os tumores de pele do tipo não melanoma). Para 2019, foram estimados 59.700 novos casos, o que representa uma taxa de incidência de 51,29 casos por 100 mil mulheres.

 

De acordo com o docente da UnB, o Nano Guava mostrou-se promissor tanto para a prevenção, quanto para o tratamento de câncer de mama. "Tratamentos para tumor as vezes matam também as células saudáveis. O Nano Guava se mostrou efetivo ao atuar de forma seletiva, matando as células tumorais sem afetar as células normais associadas".

 

O professor explica que "as células cancerígenas, como as de mama, precisam aumentar seu estresse oxidativo para realizar metástase, ou seja, se multiplicar. Uma das hipóteses do mecanismo antitumoral é justamente diminuir o estresse oxidativo destas células, o que pode ser favorecido pelo alto teor antioxidante do Nano Guava".

 

Os resultados estão detalhados em artigo científico publicado na revista Food Research International. O produto está na fase de pesquisa clínica em humanos, etapa que deve levar de um a dois anos. Se aprovado, o produto poderá compor o rol de alternativas para tratamento da doença.

 

Entraves ao progresso científico

O potencial do projeto Nano Guava esbarra em dificuldades comuns à ciência do país. "Os principais desafios que enfrentamos foram pouco recurso financeiro público; dificuldade na aquisição de materiais, equipamentos e reagentes para executar experimentos; dificuldades em importar materiais específicos para testes toxicológicos; e burocracia na transferência de tecnologia da academia para a indústria. Atualmente, a situação da pandemia no país dificulta a continuidade de algumas pesquisas", detalha Andreanne Vasconcelos.

 

José Roberto de Leite lembra que a inovação científica proporciona às empresas do país maior competitividade no mercado nacional e global. Entretanto, ele alerta que, além de mais investimento em pesquisas de longo prazo, é preciso corrigir o "desalinhamento crônico existente entre academia, Estado e setor privado, que é constatado nas altas taxas tributárias em setores de desenvolvimento como startups e empresas de bases tecnológicas".

 

O docente da UnB ressalta que a bioeconomia representa uma oportunidade promissora para países ricos em biodiversidade e com forte tendência à agricultura, como o Brasil. "A partir de recursos biológicos renováveis, como os resíduos de processos extrativos ou de transformação, podem ser produzidos alimentos, energia, artigos químicos e têxteis, entre outros, de valor econômico e ambiental".

 

Fomento e inserção internacional

Médico oncologista e representante da MEDLIG, Jaco Saraiva conta ter ficado "particularmente interessado no projeto, pois envolve a biodiversidade brasileira, valoriza o capital intelectual através do contato do corpo discente com os docentes e pesquisadores, e gera possibilidade de trazer novas divisas para o Brasil".

 

Para ele, o país tem condições de ser independente em diversos setores, e a pesquisa científica nos seus mais diversos níveis permitiria esse salto. "Os recursos financeiros são essenciais para fazer ciência de alta qualidade, mas o capital intelectual é que poderá ter os insights para melhor aplicação desses recursos".

 

A docente Selma Kuckelhaus, coorientadora de Andreanne Vasconcelos e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Morfologia e Imunologia Aplicada da Universidade de Brasília (NuPMIA), aponta a colaboração multi-institucional e as parcerias público-privadas como boas alternativas para fomentar a pesquisa científica.

 

"A troca de experiências com outros grupos, do país ou do exterior, é importante para crescimento dos nossos estudantes e capacitação do corpo técnico. Não dá pra desenvolver medicamentos ou qualquer pesquisa só aqui na nossa bolha. Precisamos expandir e trocar experiências para que nossos estudantes conheçam potenciais parceiros no mundo e eles nos conheçam também", completa Selma Kuckelhaus.

 

CEO da Bioprospectum e coordenadora do estudo na Universidade do Porto, Alexandra Plácido ressalta que a formação de alianças estratégicas e a internacionalização das pesquisas permitem responder de forma mais célere e eficiente aos crescentes desafios competitivos e tecnológicos do mundo atual.

 

"De modo geral, parcerias entre universidades, institutos e empresas de diferentes países permitem, para além da troca de conhecimento, explorar e manter a liderança e competitividade tecnológica, através do desenvolvimento de produtos e/ou de processos inovadores. No nosso caso, a parceria permitiu o desenvolvimento de um produto tecnológico para aplicação na área da saúde", comenta Alexandra Plácido.

 

A CEO enfatiza que "muitos projetos não saem do papel por falta de investimento público, o que pode ser minimizado com o estabelecimento de parcerias público-privadas". Ela acrescenta que, mesmo com as parcerias já realizadas para o Nano Guava, ainda é preciso "alternativas que nos ajudem na produção em larga escala deste produto". Outra dificuldade que o projeto enfrenta são "as burocracias relativas ao transporte da amostra, nomeadamente ao nível da legislação sanitária, que tornam o processo moroso e dispendioso".