REPORTAGEM

Setor artístico e cultural sofre com impactos econômicos da pandemia de coronavírus. Quase metade dos trabalhadores do segmento são autônomos e precisaram se reinventar para garantir comida na mesa

 

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A rapper Realleza acredita que a cultura “salvou muitas almas” na pandemia e espera que isso contribua para mais valorização do setor. Foto: Ester Cruz.

 

Texto: Raíssa Gomes

 

Dos palcos de estádios, casas de show, teatros, bares, restaurantes para a era das lives – termo usado para transmissões ao vivo pela internet. Os trabalhadores do setor cultural, assim como os de outros segmentos, tiveram que reinventar sua forma de atuar após o início da pandemia de covid-19 e das consequentes medidas de isolamento social.

 

Em sua maioria patrocinadas por marcas de cerveja, as lives de artistas da música tiveram crescimento explosivo em 2020. Mas o fenômeno não parece se sustentar ao longo do tempo, pelo menos para outros segmentos culturais, e nem chega com tanta força e recursos para artistas menos conhecidos do grande público.

 

Na chamada cadeia produtiva da cultura, que envolve trabalhadores diretos e indiretos do mercado cultural (como artistas, iluminadores, costureiras, empresas de alimentação, técnicos de som, maquiadores) muita gente precisou trocar os palcos e cenários por ocupações que garantissem comida na mesa.

 

"A cena ficou totalmente fragilizada, só conseguiu se reerguer quem já tinha certa vantagem. Quem começou agora infelizmente precisou trilhar outros caminhos. Vi muitos dançarinos e produtores trabalhando com coisas fora da área de atuação deles, como vendendo bolo ou cachorro quente", compartilha Realleza, rapper de Ceilândia, no Distrito Federal (DF) e bacharel em direito.

 

Para o lançamento do segundo álbum em 2020, a rapper precisou adequar as expectativas ao cenário atual, lidando com incertezas sobre sua renda e com bloqueios de criatividade. "Com a pandemia, tive que soltar [o álbum] no modelo digital, apenas. Foi bom porque consegui que as pessoas ouvissem enquanto estamos nesse cenário. Mas também foi ruim, porque não tive contato direto com o público para quem estava fazendo a minha arte. É muito diferente a interação de lançar uma música e alguém comentar num ‘post’; de a pessoa te ver cantando ao vivo e se sentir tocada, cantar junto, chorar, sorrir, todo esse contato humano", lamenta.

 

Ativista da Frente Unificada da Cultura do DF e integrante do Conselho Nacional de Política Cultural e do Conselho de Cultura do Distrito Federal, Rita Andrade afirma que "quando a pandemia chegou, já pegou o setor muito fragilizado. Ela deixou evidente que o sistema estava adoecido, cansado e fragilizado; e agravou tudo isso".

 

A conselheira acredita que não está claro para a sociedade o impacto da falta de recursos para quem vive de cultura no país. "Nós estamos falando de ter arroz com feijão [na mesa dessas pessoas], da manutenção de espaços abertos, da continuidade de manifestações tradicionais que são fundamentais na identidade do povo brasileiro", explica.

 

Impacto em números

Estimativa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) aponta prejuízo globais na ordem de US$ 10 bilhões somente em patrocínios e apoios institucionais para a área de produção musical.

 

No Brasil, a crise evidenciou fragilidades já existentes no setor, marcado pela informalidade e pelo baixo alcance das políticas governamentais para pequenos empreendedores e trabalhadores autônomos. É o que retrata o levantamento Percepção dos impactos da covid-19 nos setores cultural e criativo do Brasil, publicado em dezembro de 2020 pela Unesco.

 

Segundo a pesquisa, quase metade dos trabalhadores da cultura perderam totalmente sua renda entre maio e julho do ano passado. O número parece ter relação direta com o quantitativo de autônomos na área, que é de 44% da força de trabalho de acordo com o Sistema de Informações e Indicadores Culturais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

 

Em junho de 2020, o Congresso Nacional aprovou e o governo federal sancionou a lei Aldir Blanc, que destina para o setor cultural um auxílio emergencial no valor de R$ 600 por artista, pago até dezembro daquele ano. No DF, o pagamento de auxílios e editais começou "logo após a declaração da situação de emergência nacional", segundo nota da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec).

 

Segundo a Secretaria, além dos recursos da lei Aldir Blanc foram lançados editais próprios, como o FAC Visual Periférico no valor de R$ 9 milhões, que aprovou 90 projetos ainda em estado de análise do mérito; e o FAC Regionalizado, com R$ 13 milhões para 195 projetos. O órgão também fechou termos de fomento com Organizações da Sociedade Civil, levantando recursos na ordem de R$18 milhões. A expectativa é ampliar o montante para 2021.

 

Na avaliação de Rita Andrade, ainda falta muito para atender de maneira digna a cadeia da economia criativa na cidade. Especialmente porque os problemas que atingem o setor não começaram com a pandemia, e parecem, ainda, distantes de acabar. "No DF, temos uma lista de artistas, produtores, realizadores e donos de espaços que ainda não receberam esse recurso [da Aldir Blanc]. Estamos em um dos momentos mais críticos do setor cultural. Eu gostaria de lembrar que esse é um setor transversal, permeia toda a sociedade. Fragilizá-lo e desmontá-lo é fragilizar uma cadeia imensa".

 

Para ela, desde 2016 há "um processo de desmonte do setor e de criminalização dos trabalhadores da cultura", algo que "já vinha corroendo todas as políticas públicas" da área. A extinção do Ministério da Cultura retrata a falta de prioridade do governo federal em relação ao setor, que é responsável por movimentar 2,64% das riquezas do país.

 

"A má execução dos fundos de cultura Brasil afora é um ataque às políticas de patrimônio, de audiovisual, de investimento, como a Lei Rouanet. Isso prejudica muito a cultura popular, o cinema, o audiovisual que produzimos no Brasil, e que vinha ultrapassando diversas fronteiras", diz Rita Andrade.

 

Em defesa da cultura

Para atenuar a falta de investimento na área cultural, o terceiro setor busca fomentar novas parcerias e encontrar estratégias para geração de renda. É o caso do Instituto Afrolatinas, que ampliou suas cooperações com empresas do terceiro com foco e somou-se à Coalizão Éditodos – que reúne organizações da área cultural com foco em empreendedoras(es) negras(os) em seis cidades do Brasil.

 

"A Coalizão tem o olhar voltado para o empreendedorismo negro, de impacto. Nossa primeira ideia era dar suporte aos negócios de empreendedores e empreendedoras que sofreriam impacto significativo por conta da pandemia. Captamos recursos para apoiar mais de 500 empreendedores, que receberam entre R$1.100 e R$ 1.500", conta Jaqueline Fernandes, presidenta do Instituto Afrolatinas, promotor do maior festival de mulheres negras da América Latina, o Latinidades.

 

Segundo a gestora, parceria do Instituto com organizações do terceiro setor e com empresas privadas possibilitou, em 2020, apoiar mais de mil trabalhadores do segmento cultural. "Tínhamos um diálogo muito grande com o poder público, participando de editais e de outros mecanismos de incentivo e apoio para viabilizar nossas ações. Mas, bem antes da pandemia, diante de todo o desmonte da política cultural e da política de gênero e raça a nível federal e local, começamos a dialogar mais com empresas privadas e com o terceiro setor".

 

A rapper Realleza é uma das beneficiadas pela articulação entre o Instituto Afrolatinas e a Coalizão Éditodos. "Eu fui me mantendo durante a pandemia por meio dos recursos obtidos de editais. Aparecia um edital e eu concorria a uma vaga para fazer a minha live e para conseguir pagar minhas contas", explica.

 

Para o futuro, Realleza deseja mais valorização do segmento e de quem faz cultura no país. "Espero que as pessoas voltem a olhar para a cultura de forma mais sensível, não apenas como um serviço de entretenimento, mas com o olhar de valorização, porque foi a cultura que salvou muitas almas durante o distanciamento da pandemia".

 

A rapper também não vê a hora de encontrar de perto seu público. "Eu vislumbro um palco 360 graus no meio da plateia, e me vejo olhando na cara de várias pessoas diferentes, sabendo que conseguimos passar por isso, e que continuei fazendo o meu trabalho: que é levar alegria, informação, cidadania e humanização para as pessoas", conclui.