A ÚLTIMA FLOR

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Texto: Vanessa Tavares

 

É no juízo de valor negativo em relação às variedades linguísticas associadas às classes sociais com menos prestígio que se caracteriza o preconceito linguístico. Baseada nessa crença, qualquer produção linguística fora do prescrito na gramática e nos dicionários (norma-padrão) é errada, feia e deficiente.

 

A norma-padrão não é a língua, é uma das suas variedades. Tem sua função voltada ao contexto formal e oficial, principalmente na escrita, a exemplo de documentos produzidos na administração pública. E por ser uma artificialidade, deve ser aprendida e ensinada na escola.

 

Ela deveria servir para facilitar a comunicação. Contudo, tem servido há muito tempo como instrumento de exclusão social, de estigmatização e de preconceito com determinados grupos sociais. Isso porque as classes menos privilegiadas têm, no geral, menos acesso à educação formal e quando têm é de forma precária. Logo, elas tendem a dominar apenas as variedades informais da língua.

 

Um estigma corrente refere-se ao erre retroflexo, que consiste em puxar o "erre" ao falar palavras como porta. Comum em Goiás e no interior de São Paulo, por exemplo, é associado a falantes da zona rural com pouca instrução e, por isso, costuma ser debochado no meio urbano.

 

Outro exemplo é a troca "ele" pelo "erre", como em pranta, chicrete e pobrema. Entretanto, a variação resulta de um fenômeno fonético que ocorre ao longo da evolução da língua. O sociolinguista Marcos Bagno ressalta que em Os Lusíadas, de Luís de Camões, há várias ocorrências desta variação, como: ingres, pubrica, pranta, frauta, frecha.

 

A visão generalista do Nordeste caracterizada por aspectos negativos, como pobreza, falta d’água, fome, analfabetismo, faz com que as variedades linguísticas dessa região sejam estigmatizadas, principalmente os sotaques – ademais tratados como se fossem um só.

 

E antes que alguém diga que para linguística pode tudo, não se trata de permitido ou proibido, muito menos de certo ou errado, mas sim de adequação. Você não vai a uma entrevista de emprego usando roupa de banho, tampouco à praia com roupa social. Semelhante à vestimenta, cada variedade da língua tem seu contexto adequado de uso.

 

Agora imagine se você tivesse apenas roupa de banho, até poderia ir a uma entrevista de emprego vestido assim. Provavelmente não teria permissão de entrar no local devido ao traje, poderia se tornar motivo de deboche, e certamente não seria selecionado para a vaga. É isso que acontece aos falantes que não dominam as variedades de prestígio, eles são excluídos de muitas esferas sociais, principalmente das posições de poder.

 

Trata-se de uma lógica cruel e sem saída. A falta de acesso à educação formal e às variedades prestigiadas da língua tornam essas classes marginalizadas e desprestigiadas. O preconceito linguístico, portanto, é de fato preconceito social, pois ele se manifesta somente em relação às variedades linguísticas associadas às classes sociais menos favorecidas, nunca ao contrário.

 

VARIEDADES LINGUÍSTICAS– Assim como os seres vivos, as línguas evoluem. Elas transformam-se ao longo do tempo, sofrem influência de fatores culturais e sociais, não sendo algo estanque e homogêneo. Com isso, existem variedades de um mesmo idioma e não há que se considerar um mais legítimo do que o outro.

 

O sociolinguista Marcos Bagno propõe três categorias para definir as variedades linguísticas, no que concerne à valoração social do seu uso:

  1. Norma-padrão: ligada à tradição gramatical normativa, modelo de língua ideal inspirado na grande literatura do passado.

  2. Variedades de prestígio: as efetivamente utilizadas pelos falantes com nível superior completo e habitantes das zonas urbanas.

  3. Variedades estigmatizadas: utilizadas por grupos sociais desprestigiados residentes nas zonas rurais e nas periferias.