DOSSIÊ

Nascido há cem anos, o patrono da educação brasileira dedicou a vida ao ensino, recebeu enorme reconhecimento internacional e se tornou um dos principais alvos de perseguições políticas, antes e depois de sua morte

 

Ilustração: Francisco George Lopes a partir de foto do Estúdio e Laboratório Fotográfico Komrad Rytter

 

Texto: Robson Rodrigues

 

Se na década de 1970 pedagogos brasileiros em formação não ouviam falar em Paulo Freire, hoje o nome do educador é indispensável nos currículos universitários. Aqueles eram anos de ditadura militar. Enquanto o resto do mundo discutia a filosofia do pernambucano exilado, por aqui suas ideias eram sufocadas. A volta gradual à democracia a partir da década seguinte possibilitou o reencontro de Paulo Freire com o Brasil – e do Brasil com Paulo Freire. De lá para cá, seu nome nunca deixou de ser relembrado, por quem o ama, ou por quem o odeia.

 

Paulo Freire completa cem anos de nascimento como um dos pensadores de maior destaque na história da educação. É reconhecido principalmente pelo desenvolvimento de uma pedagogia crítica, baseada no diálogo como ferramenta de reflexão sobre o mundo e a própria experiência nele, sempre em busca da emancipação individual e social. Seu método de alfabetização de adultos em curto prazo também se tornou referência por partir da realidade vivida pelo estudante para se chegar à construção das palavras que a compõem.

 

Patrono da educação brasileira, Freire foi contemplado com 48 títulos de Doutor Honoris Causa, entre outras honrarias de universidades e organizações nacionais e estrangeiras. É o autor de Pedagogia do oprimido, único título brasileiro a aparecer na lista dos cem livros mais requisitados por universidades de língua inglesa, divulgada pelo projeto norte-americano Open Syllabus. A obra lançada em 1968 é a mais citada mundialmente na área de educação e a terceira em trabalhos de ciências humanas, à frente de autores como Karl Marx e Michel Foucault, segundo dados do Google Scholar.

 

Mesmo com tamanho reconhecimento, há quem queira "expurgar a ideologia de Paulo Freire" das escolas, como disse o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, durante campanha à presidência em 2018. O nome do educador, que já não estava mais com tanto destaque desde sua morte em 1997, voltou à tona a partir das manifestações de 2013, quando grupos passaram a pedir "menos Paulo Freire" e a atribuir uma dita derrocada do ensino no Brasil à influência do pensador. Os críticos a Freire chamam-no de comunista e o desprezam por "pregar marxismo" nas salas de aula, noções que são descreditadas por seus defensores, segundo os quais muito se fala de Paulo Freire sem conhecê-lo de verdade.

 

Uma vida voltada à educação

"Eu gostaria de ser lembrado como um sujeito que amou profundamente o mundo e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas, a vida", disse Paulo Freire em sua última entrevista, em 1997. Apesar de bela, a frase não dá conta da marca que ele deixou. "Nordestino em qualquer parte do mundo", como ele se descrevia, o pensador pernambucano é sempre lembrado pela gentileza, pela disposição imperturbável para o diálogo e pelo amor à educação.

 

Paulo Reglus Neves Freire nasceu no Recife, Pernambuco, em 19 de setembro de 1921. Sua infância como garoto católico de classe média foi duramente abalada pela recessão econômica de 1929. Para reduzir custos, sua família, composta pelo pai Joaquim Temístocles Freire, capitão da Polícia Militar de Pernambuco, pela mãe Edeltrudes Neves Freire, dona de casa habilidosa em bordado e em piano, e pelos três irmãos mais velhos, teve de se mudar para o município de Jaboatão dos Guararapes, distante 18 km da capital pernambucana, onde experimentou a pobreza e a fome.

 

Na adolescência, Freire conseguiu uma bolsa de estudos no prestigiado Colégio Oswaldo Cruz e lá pôde aprimorar os estudos. De acordo com a viúva de Paulo Freire, Ana Maria Araújo Freire, ou Nita Freire, como é mais conhecida, essa oportunidade foi fundamental para que ele se tornasse um importante pensador no futuro. "É possível que Paulo, sozinho, pudesse ter formulado seu pensamento, mas muito dificilmente conseguiria. Ele aproveitou as chances de aprendizagem que lhe foram dadas. Com isso construiu seu saber e a própria epistemologia. Sua escolarização de qualidade foi fundamental para seu desenvolvimento humano e humanístico", comenta, aos 87 anos, a doutora em Educação.

 

A paixão pelo ensino foi despertada nos anos 1940. Ele dava aulas de língua portuguesa para alunos do seu antigo colégio enquanto estudava Direito na Universidade do Recife, hoje Universidade Federal de Pernambuco. Apesar de ter concluído o curso, Paulo Freire nunca atuou como advogado. Sua primeira e última experiência em um escritório de advocacia o abalou: diante da tarefa de cobrar um dentista bastante endividado, Paulo Freire percebeu que não conseguiria ser advogado e recuou no caso. Ao saber disso, Elza de Oliveira, primeira esposa e professora do ensino primário, o teria alertado de que sua vocação era a de professor.

 

A partir de 1947, Paulo Freire passou a integrar a Diretoria de Educação e Cultura do recém-criado Serviço Social da Indústria de Pernambuco (Sesi-PE). Lá, teve contato com a prática que marcaria sua trajetória. Ele trabalhou por 10 anos como educador popular na instituição. De acordo com o historiador Sérgio Haddad, autor da biografia O educador: um perfil de Paulo Freire, lançada em 2019, foi nesse período junto ao Sesi que Freire desenvolveu e aplicou pela primeira vez seu método de alfabetização de adultos com trabalhadores, que ficaria conhecido como Método Paulo Freire – nome, aliás, que não lhe agradava.

 

Método civilizatório

Seu método inovador destinado à alfabetização de jovens e adultos se afastava da metodologia infantilizada aplicada a crianças. Sem oportunidades de estudos, jovens e adultos analfabetos ficavam de fora do processo democrático, já que eram proibidos de votar. Isso representava um universo de mais da metade dos potenciais eleitores. O Censo de 1950 aponta que 50,6% da população com mais de 15 anos não sabia ler ou escrever.

 

Convidado em 1958 para participar de um congresso de educação promovido pelo governo de Juscelino Kubitschek, Freire teve oportunidade de divulgar suas ideias em maior escala. Nos anos seguintes, ele criou o Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, participou dos movimentos de cultura popular e assessorou campanhas de alfabetização em várias cidades do Nordeste.

 

Darcy Ribeiro, com quem teve uma relação de amizade ao longo da vida, chegou a convidar Paulo Freire para ajudá-lo a fundar a Universidade de Brasília (UnB) no começo dos anos 1960. O pernambucano, no entanto, rejeitou por não "poder viver fora do Recife", como relata Nita.

 

O método de Paulo Freire foi ganhando corpo e teve sua principal experiência em 1963, em Angicos, Rio Grande do Norte. Ao todo, foram 300 adultos alfabetizados em 40 horas ao longo de 45 dias nos chamados círculos de cultura. A pequena cidade potiguar tornou-se um marco para a educação no Brasil e no mundo. Naquele ano, o The New York Times reportou a experiência. "Brasil realiza um movimento de alfabetização", estampava o jornal norte-americano em 2 de junho de 1963.

 

Segundo Sérgio Haddad, esse movimento de alfabetização tinha a intenção política de colocar as pessoas na sociedade. "Paulo Freire achou que era uma forma de alavancar setores excluídos da sociedade. Ele poderia aumentar o nível de percepção da realidade dessas pessoas e promover uma tomada de consciência sobre as causas de suas condições de vida. Também era uma forma de exercer o direito de participação por meio do voto de forma consciente", comenta.

 

A intenção não era criar eleitores em massa. "Ele dizia assim: 'Eu não quero ensinar as pessoas a escrever o nome para votar. Eu quero ensinar as pessoas a se conscientizarem, lerem o mundo, saberem porque estão analfabetas'", lembra Nita Freire.

 

O presidente João Goulart participou da formatura de Angicos e convidou Paulo Freire para criar um plano nacional de alfabetização. Quem também participou do evento foi o general Castello Branco, que se tornaria o primeiro presidente do regime militar. Ele via no programa de alfabetização um perigo. "Vocês estão criando cobras aqui no Nordeste", teria dito o general a um jornalista, relata Sérgio Haddad.

 

As eleições em 1961 contaram com a participação de 12 milhões de eleitores. O plano de João Goulart era alfabetizar 5 milhões de pessoas, o que representava um aumento de 40% no número de votantes. A previsão era lançar em maio de 1964 cerca de 60 mil círculos de cultura que alcançariam 1,8 milhão de pessoas pelo Brasil.

 

Para Sérgio Haddad, isso desestabilizaria a conjuntura política daquele momento. O projeto, portanto, teve grande influência no golpe de 1964. "A elite da sociedade via que um método que colocava uma quantidade muito grande de pessoas para votar poderia afetar os currais eleitorais. E, votando de maneira consciente, isso poderia ser perigoso sob o ponto de vista da ascensão de setores populares na participação social."

 

Paulo Freire passou a sofrer acusações de querer o comunismo no Brasil. "Começaram a dizer que ele era agente soviético. Tudo para justificar prendê-lo. Ficou preso até seu exílio no final de 1964. Ele recebeu muitas acusações tanto da elite da sociedade, quanto dos militares", explica Haddad. "Paulo nunca foi comunista. Nunca foi sequer marxista", observa Nita Freire. Em diversas ocasiões, Paulo Freire reafirmou sua postura socialista, apesar de ter sido um crítico dos sistemas socialistas. Especialistas em sua obra o qualificam como humanista.

 

Em março de 1964, quando houve o golpe militar, o programa de Paulo Freire foi um dos primeiros a ser desativado. Ele havia viajado por todo o Brasil e construído mais de 20 mil círculos de cultura. O material didático estava pronto para ser aplicado e as equipes, treinadas para começar o trabalho.

 

O educador foi preso duas vezes naquele ano. Sérgio Haddad conta que, na primeira detenção, um dos soldados propôs para o educador que ensinasse outros presidiários a ler e escrever. "Ao que Paulo Freire respondeu: 'mas eu estou preso justamente por causa disso'."

 

Do Recife para o mundo

Paulo Freire teve seus direitos cassados e se exilou primeiro na Bolívia (que também sofreria um golpe militar em 1964), e depois no Chile, onde ficou por quatro anos. Lá, ele trabalhou em programas de alfabetização e conviveu com outros brasileiros exilados. É no Chile que ele escreve sua obra mais importante, Pedagogia do oprimido, traduzida para mais de 20 idiomas. A ferramenta de pesquisa para literatura acadêmica Google Scholar registrou 72.359 referências à obra até 2016.

 

Ao longo de 16 anos de exílio, Paulo Freire teve uma agenda bastante intensa. Em sua primeira viagem para os Estados Unidos, deu aulas em Harvard e passou a receber convites frequentes de diversas universidades norte-americanas para encontros e palestras. Depois, trabalhou por 10 anos no Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em Genebra, na Suíça, e fez mais de 150 viagens internacionais nesse período. A partir de 1975, passou a visitar países africanos. Sua atuação no CMI fez com que o conteúdo de seus livros se propagasse por todos os continentes.

 

Enquanto isso, no Brasil, o nome de Paulo Freire era proibido. "Os livros dele não eram conhecidos no Brasil. Foi banido até dos jornais, ninguém podia falar dele", explica o pesquisador Erasto Fortes, ex-diretor da Faculdade de Educação (FE) da UnB, estudioso da obra do educador pernambucano.

 

"Eu me formei como professor na década de 1970, em plena ditadura, e nunca estudei Paulo Freire nas escolas de pedagogia brasileiras. Era proibido. Esses livros vão chegar só mais tarde no Brasil, impressos no exterior", detalha o pesquisador. "Com o processo de distensão da ditadura e a volta dos governos civis, essa literatura de Paulo Freire acaba ganhando um corpo maior e ele passa realmente a ser estudado, pelo menos, nas instituições sérias de ensino."

 

Assim que teve oportunidade, em 1980, Paulo Freire voltou definitivamente ao Brasil. Tornou-se professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e, depois, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 1989 assume um desafio diferente de tudo o que havia feito: ser secretário de Educação da capital paulista, no governo de Luiza Erundina, que na época era do Partido dos Trabalhadores (PT), do qual Paulo Freire foi cofundador.

 

Erasto Fortes é autor de Direitos humanos e educação libertadora, livro que escreveu ao lado de Nita Freire sobre o período na Secretaria de Educação. Para ele, Paulo Freire deixou marcas no ensino em São Paulo, apesar dos ataques que recebia da mídia. "A gestão de Freire, para a época, revolucionou a educação pública, porque ele transportou para as escolas a concepção de educação popular que ele tinha, dando uma valorização extrema às camadas mais pobres."

 

Segundo Erasto, Paulo Freire promoveu concursos para contratação de professores. Os jornais, entre outras acusações, teriam passado a dizer que o secretário estava se aproveitando do concurso para vender livros dele. "Aquilo era uma bobagem. Imagina, ele precisar de um concurso para vender livros naquela época em que era famoso internacionalmente", conta – e ri. Paulo Freire não concluiu sua gestão. Saiu da secretaria em 1991 e foi substituído pelo filósofo e professor Mario Sérgio Cortella, que tinha sido seu assessor.

 

Paulo Freire morreu em maio de 1997, aos 75 anos. Em 2012, a presidenta Dilma Rousseff o homenageou com o título de Patrono da Educação Brasileira. O educador foi agraciado em vida com 34 títulos de Doutor Honoris Causa por diversas universidades no Brasil e no exterior, mais cinco in memoriam, entregues postumamente a Nita, e outros nove que não puderam ser recebidos pessoalmente. A lista de honrarias não para de crescer. "Quem o entende, o admira e o ama profundamente", sintetiza Nita.

 

A viúva lamenta que, desde a morte do ex-marido, sempre desejou tê-lo visto chegar aos 100 anos e poder celebrar seu centenário junto a ele. Mas, diante dos esforços nos últimos anos de alguns grupos para tentar manchar o legado de Paulo Freire no Brasil, ela se sente de certa forma aliviada por ele não ter passado por essas agressões. "Vejo que seria muito sofrimento para uma pessoa extremamente sensível e amorosa."