ENSAIO VISUAL
Foto: Acervo/Jornal Tribuna do Norte

 

Texto: Anastácia Vaz

 

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Era 1963 na pequena Angicos, interior do Rio Grande do Norte. Geograficamente, a cidade, que herdou nome de árvore presente na Caatinga, no Cerrado e na Mata Atlântica, ocupa o coração do estado, a quase 200 quilômetros da capital Natal, em pleno sertão, com clima árido e salubre.

 

À época, o censo populacional registrava total acurado de 9.542 habitantes. Oitenta porcento dos moradores economicamente ativos trabalhavam na agropecuária, e a cultura e o beneficiamento do algodão eram os principais motores da renda local. Às estatísticas da miúda urbe, acrescia-se uma negativa: o índice de analfabetismo entre adultos superava os 70%, maior taxa em todo o estado.

 

Naquele ano, a cidade foi escolhida para receber uma experiência inovadora de alfabetização, coordenada pelo educador Paulo Freire – então diretor do Serviço de Extensão Cultural da antiga Universidade do Recife, hoje Universidade Federal de Pernambuco – junto a um grupo de estudantes, em sua maioria universitários. A meta era ousada: ensinar a ler e a escrever, além de politizar, os adultos angicanos, sem cartilhas educativas e em curto período, por práticas que considerassem as vivências daquela população.

 

A proposta se pautava por um conceito de alfabetização para além da decodificação dos códigos linguísticos e guiado pela leitura crítica da realidade. Os resultados impressionaram pela velocidade de aprendizagem dos participantes e pelos impactos na comunidade: 300 pessoas foram alfabetizadas em 40 horas de aulas, ao longo de mais de um mês. Não para menos, a iniciativa ecoou mundo afora junto ao nome de seu idealizador. Este foi o pontapé do chamado Método Paulo Freire, cuja aplicação se pauta nas experiências de vida dos aprendizes.

 

A ação em Angicos foi possível mediante políticas públicas articuladas entre administração estadual, o então Ministério da Educação e Cultura (MEC), a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid).

 

Com suas ideias ousadas, Paulo Freire propôs o levantamento prévio do universo vocabular da comunidade angicana, que orientou o método adotado. Junto a esses verbetes, elementos do cotidiano e da cultura daquela população eram traduzidos em ilustrações, projetadas em slides nas paredes de salas de aula improvisadas, para estimular os diálogos e despertar a consciência política e noção de pertencimento entre os alunos.

 

Parte do acervo visual deste memorável capítulo da cronologia da educação brasileira é resgatado neste ensaio da Darcy. Criadas pelo desenhista natalense Uran França, as ilustrações originais somam-se a fotografias históricas desta experiência, apresentadas em uma releitura, como propõe Freire, para quem "estudar não é um ato de consumir ideias, mas de criá-las e recriá-las".

 

Os registros foram obtidos do acervo do Instituto Paulo Freire, do Fórum de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e do Jornal Tribuna do Norte. Originalmente em preto e branco, as fotografias ganham, nas próximas páginas, um colorido, pelo contraste de tons, que evoca a atualidade e o vigor do pensamento freiriano. Ao mesmo tempo, a releitura evidencia ainda mais os ruídos que perpetuam nestas imagens a passagem dos anos e que as tornam memórias pulsantes do legado de um dos mais célebres educadores do país.

 

Um universo de palavras ilustradas

24 de janeiro de 1963. Primeiro encontro dos círculos de cultura em Angicos, propostos por Paulo Freire como espaços dialógicos de aprendizagem e troca de conhecimentos entre alunos e coordenadores da iniciativa. A ideia era debater, em uma conversa descontraída, o conceito antropológico de cultura, pela distinção do mundo da natureza. Como exemplo, a projeção da imagem de um homem, cercado de elementos com referências a esses dois universos, despertava olhares tímidos e curiosos dos aprendizes.

 

Da apresentação do slide, partiam perguntas a eles: "O que vemos aí?". As respostas eram múltiplas: "um pé de pau"; "um 'poico'"; "uma bacurinha", registra o livro de Carlos Lyra As quarentas horas de Angicos: uma experiência pioneira de educação. A partir de diálogos sobre a realidade local se iniciavam as aulas na cidade potiguar.

 

Como fios condutores, palavras e ilustrações representativas do cotidiano angicano eram trabalhadas em classe e desdobravam assuntos diversos, como costumes e culinária local, economia, custo de vida, gêneros alimentícios, trabalho, união, democracia e emancipação política.

 

Dos 400 verbetes identificados pelos alfabetizadores sobre o vocabulário local, cerca de 20 foram escolhidos para compor o leque das chamadas palavras geradoras, que apontavam o caminho para o aprendizado de novas famílias de letras. Entre eles belota (que designa a ponta de renda das redes de dormir), povo, voto, salina, feira, milho, cozinha, jarra, tigela, chibanca, xique-xique e expresso. Termos que, apesar da simplicidade, convidavam a reflexões críticas profundas sobre o panorama social da cidade e do país.