SOLUÇÕES

Pesquisadores apresentam resultados de experiências com sistemas agroalimentares sustentáveis. Modelos trazem menor impacto ambiental, integram mulheres e reduzem a insegurança alimentar

 

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Durante três anos, mulheres do município de Orobó, em Pernambuco, receberam apoio técnico do PDHC para melhorar os sistemas produtivos e ampliar as oportunidades. Foto: Olivia Godoy / CEGAFI

 

Texto: Marina Nery

Design: Francisco George Lopes

 

Como encarar a fome no Brasil? Com mais da metade da população com algum grau de insegurança alimentar, incluindo os mais de 33 milhões que passam fome, a resposta pode parecer distante. Iniciativas que contam com a participação de pesquisadores da Universidade de Brasília são um norte em meio ao desafio que atravessa a história do país.

 

O projeto Tipologia da Inclusão Produtiva Rural (TIPR) trabalha a promoção da segurança alimentar com apoio científico, engajamento da comunidade local e incidência em políticas públicas.

 

O estudo identificou iniciativas promissoras na área de inclusão produtiva que tivessem potencial para conduzir transformações significativas nos sistemas alimentares sustentáveis. Então, mapeou ações em sete estados nas regiões Norte, Nordeste e Sul.

 

“Partimos da premissa que a inovação inclusiva é um caminho necessário para a inclusão produtiva”, explica Mireya Perafán, coordenadora do projeto e professora de Agronomia e Medicina Veterinária da UnB.

 

Assim, era requisito que as populações vulneráveis participassem de ao menos uma das fases do processo de produção, comercialização, processamento ou abastecimento.

 

A pesquisa considerou, também, os níveis de inovação inclusiva em: articulação com políticas públicas; relação com os princípios da agroecologia; produção, acesso a mercados e garantia da segurança alimentar e nutricional; e cumprimento dos objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.

 

Para identificar o potencial inovador de cada experiência, a equipe observou as bases de dados de três iniciativas: Ação Coletiva Comida de Verdade (ACCV), projeto Dom Helder Câmara (PDHC) e INCT Odisseia. Do conjunto total, foram selecionadas 33 para a análise.

 

Distribuição espacial das 33 experiências selecionadas

Distribuição espacial das 33 experiências selecionadas. Ilustração: Francisco George Lopes/Secom UnB.

 

FACES DA INCLUSÃO

 

Um grupo interdisciplinar de pesquisadores desenvolveram o TIRP ao longo de 2021, com o apoio de cinco redes de pesquisa e oito instituições de ensino superior, entre elas a UnB.

 

“Queremos romper barreiras e transitar em um tema que não é somente a produção de alimentos, mas que envolve nutrição, ciência política, agronomia e questões ambientais”, complementa Mário Ávila, também coordenador do TIPR e professor do Programa de Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural da Faculdade UnB Planaltina (FUP).

 

Para compreender como esses processos de inclusão e inovação estavam acontecendo e poder registrá-los a partir da voz, dos ensinamentos e das reflexões das pessoas que protagonizam essas experiências, a equipe de pesquisa visitou quatro experiências localizadas no Rio Grande do Sul, Piauí, Ceará e Pará.

 

A experiência familiar de Mari Alcy Santos é uma delas — e ilustra a história de exclusão de camponeses em Quixadá, no sertão do Ceará. No município, 70% dos estabelecimentos agropecuários são representados pela agricultura familiar, mas apenas 59% são donos de suas próprias terras, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2017.

 

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Propriedade de dona Alcy Santos é exemplo de inovação social e técnica pela capacidade e diversificação da produção, além de mobilizar mulheres. Foto: Olívia Godoy/Cegafi (Acervo)

 

Em 2007, dona Alcy separou-se e, tendo um filho pequeno para criar, conseguiu comprar uma pequena faixa de terra, 22 hectares, da fazenda onde morava com o pai e o ex-marido. Por meio de empréstimos de crédito rural, construiu, plantou e prosperou fazendo parte dos 19% de mulheres que dirigem uma propriedade. Ela foi beneficiada por uma política pública para construção de cisternas e incluída no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) — iniciativas do Governo Federal para compra de alimentos da agricultura familiar.

 

Com a chegada do Projeto Dom Helder Câmara (PDHC), em 2019, a propriedade tornou-se unidade agroecológica de referência e passou a produzir hortaliças para autoconsumo e comercialização em mercados e feiras locais. A assessoria técnica para a iniciativa foi do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador (Cetra).

 

“Eu produzo comida de verdade aqui, quase tudo o que comemos e a renda da nossa família vem disso. Hoje eu tenho meu conhecimento sobre a importância do meu trabalho”, comenta Alcy.

 

A experiência da produtora rural é exemplo de inovação social e técnica, segundo a pesquisa do TIPR, pois seu quintal produtivo e a capacidade de experimentar e diversificar a produção de alimento são notáveis. Outro fator relevante é sua integração à rede de agricultores solidários, que orienta o trabalho com agroecologia e desempenha caráter mobilizador junto às mulheres da comunidade.

 

RESULTADOS

As recomendações finais do projeto reconhecem: as inovações de base popular vão além das soluções de mercado; a inclusão produtiva é o centro da transição para a sustentabilidade e a necessidade de aprofundar os estudos de ações promissoras. Orienta-se ainda analisar a diversidade produtiva, estimular a diversificação e realizar trabalhos de campo que contribuam para ampliar as ações bem-sucedidas.

 

O TIPR ainda propõe alternativas de políticas públicas de inovação, científicas e tecnológicas, de acordo com cada projeto, como incentivos fiscais, promoção de intercâmbios, educação superior e prêmios de incentivo à inovação. Durante o projeto, os pesquisadores ainda realizaram seminários de formação nas três regiões, além de atividades de campo para a sistematização das vivências.

 

EXPERIÊNCIAS INOVADORAS

Ofertar assistência técnica a agricultores familiares em situação de pobreza ou extrema pobreza potencializa a produção local e eleva a diversificação nutricional dos alimentos. “Isso significa mais renda e qualidade do alimento à mesa”, sintetiza Mauro Del Grossi, professor nos programas de pós-graduação em Gestão Pública e Agronegócios da FUP. Ele também integrou a equipe multidisciplinar que trabalhou no Projeto Dom Helder Câmara (PDHC), uma das três pesquisas que serviram à base de dados do TIPR.

 

O projeto preconiza uma proposta de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) que atenda às diferentes dimensões do desenvolvimento rural e do combate à pobreza e à fome. Entre as atribuições estão o acompanhamento individualizado e continuado de técnicos agrícolas, que compartilham seus conhecimentos como formas de aumentar a produção, a qualidade e o valor dos produtos, garantindo segurança alimentar e nutricional e incluindo os beneficiários em associações e cooperativas.

 

Preguinho, como é conhecido o alagoense Francisco Silva, de 59 anos, era pintor antes de se tornar agricultor e apicultor, graças ao PDHC. Ele é dono de um pequeno lote próximo de onde cresceu, no município de Maravilha, localizado no sertão de Alagoas e distante 232 km da capital do estado.

 

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Com apoio técnico do Projeto Dom Helder Câmara, apicultor Francisco Silva aumentou e diversificou a renda da família, no sertão de Alagoas. Foto: Olivia Godoy/Cegafi (Acervo)

 

“Eu fui ensinado e incentivado a expandir minha hortinha e ainda a produzir e comercializar mel”, explica o agricultor. De família pobre, Preguinho abandonou os estudos cedo por falta de recursos e também pela distância da escola, mas abraçou a oportunidade de receber apoio técnico para aumentar e diversificar a renda da família.

 

Ele e a esposa fazem parte das mais de 54 mil famílias, atendidas em 835 municípios de 11 estados do semiárido, que integram a segunda fase do projeto, executada de 2014 a 2022. Na primeira fase, anterior à participação dos pesquisadores da UnB, o PDHC beneficiou outras 22 mil famílias agricultoras.

 

Inicialmente, a proposta era que ao menos metade dos beneficiários fossem mulheres. Elas estão envolvidas num amplo leque de papéis dentro dos sistemas alimentares no campo, mas suas participações nas atividades produtivas são pouco reconhecidas. O objetivo de garantir maior autonomia para as produtoras foi cumprido ao final do projeto, com 67% do total de assistências para mulheres.

 

É o caso da produtora Ana Cláudia da Silva, do sítio Malambá, em Vertente do Lério, Pernambuco. Ela foi assessorada pelo Centro Sabiá — organização não governamental que promove a agricultura familiar dentro dos princípios da agroecologia e prestadora do serviço de Ater na região.

 

 

Ela começou a vender a produção dos 48 pés de maracujá que tinha em sua propriedade em 2018. No ano seguinte, foi incentivada a diversificar o uso do produto e a plantar outras culturas consorciadas, como milho, alface, couve, abacaxi, cenoura e tomate.

 

“Temos mais qualidade de vida, a gente se alimenta e comercializa aquele produto sem veneno e tudo começou na nossa produção para consumo, depois foi aumentando. Com o incentivo, passamos a produzir suco, polpa, sorvete e bolo”, relata.

 

Ana Cláudia também foi incentivada a participar de feiras em sua região. “Eu não sabia nem o que era uma feira agroecológica e tinha muita timidez. Mas sou muito grata pela assistência, que foi uma virada de chave e me possibilitou trabalhar na minha terra, cuidando da minha família e tendo uma renda que faz muita diferença para nós”, conta a agricultora.

 

Segundo a produtora, seria difícil trabalhar fora por conta da distância e necessidade de conciliar com os trabalhos de mãe e dona de casa. Hoje, garantiu a independência econômica da família com a comercialização de seus produtos. Ainda começou a vendê-los na feira do município de Surubim, a 16 km de Vertente do Lério.

 

Com o dinheiro, complementa a renda familiar, sem depender do trabalho do marido. “Nosso sonho é que no futuro toda a renda da nossa família venha da agricultura e a gente consiga sobreviver com a produção da nossa terra”, se entusiasma.

 

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Virgílio Magalhães é um dos agricultores do Assentamento Silvio Rodrigues na Zona Rural de Alto Paraíso de Goiás. Confira a reportagem Gosto pela terra na edição O Cerrado está morrendo. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB 

 

DESAFIOS

A pobreza é um fenômeno predominantemente rural. No mundo, dois terços das pessoas que vivem nesta condição residem no campo, segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), de 2021. A autonomia financeira dá aos agricultores familiares liberdade de escolha sobre o quê e como produzir e aumenta a qualidade nutricional dos alimentos ofertados a suas famílias.

 

No Brasil, a maior parte da população rural é composta por agricultores familiares, indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais. Mesmo assim, há discrepâncias. Para Mário Ávila, a dificuldade em obter o devido reconhecimento e a falta de orçamento fazem com que esses projetos sejam tidos como ações isoladas, insuficientes para modificar o sistema de abastecimento e produção de alimentos.

 

"Trabalhamos oferecendo dados científicos aos gestores, com sugestões de como aplicá-las para que essas iniciativas possam ser escaladas e alcançar muito mais pessoas. Mas temos dificuldade de mudar o pensamento de que elas devem ser prioridade, e não somente o agronegócio, que recebe milhões em investimento”, destaca o docente.

 

Ele cita que o ponto central sobre a produção agrícola na atualidade é o equilíbrio entre a recuperação de biomas e a segurança alimentar. “A gente não precisa desmatar milhões de hectares para produzir mais, nós podemos reorientar a produção com sistemas de cultivos complexos, que têm custos e impactos menores. Mas temos barreiras históricas que priorizam matrizes, como boi, soja, milho e cana”, salienta.

 

Mireya Perafán lembra outro desafio, que temos que nos perguntar como estão sendo produzidos, processados, distribuídos e consumidos os alimentos e avançar na compreensão das inter-relações entre a agricultura, a mudança climática, sistemas alimentares e segurança alimentar.

 

Identificar, tipificar e compreender como funcionam redes de organizações que favorecem processos de inclusão produtiva e atuam no âmbito de sistemas alimentares sustentáveis é o primeiro desafio. O segundo é, a partir do que aprendemos com essas experiências, propor alternativas que favoreçam a transição para sistemas alimentares sustentáveis.

 

Assim, numa segunda etapa do projeto, com o nome Produção Rural Inclusiva e Sistemas Alimentares (Prisma): apontando caminhos para consolidação de nichos de inovação, a iniciativa aprofundará os estudos das redes vinculadas às experiências notáveis da primeira etapa e também estudará casos na Colômbia, Chile e Brasil.

 

GLOSSÁRIO

Inclusão Produtiva Rural (IPR): trabalha condições econômicas, políticas e socioculturais para gerar oportunidades para pessoas em situação de vulnerabilidade que vivem das atividades do campo. 

Sistemas alimentares sustentáveis: são modelos de produção e distribuição de alimentos que preservam os recursos naturais e ambientais, produzindo alimentos mais saudáveis e seguros para o consumo final. 

Segurança alimentar: é garantida quando as pessoas têm acesso físico, social e econômico permanente a alimentos seguros, nutritivos e em quantidade suficiente para satisfazer suas necessidades.

 

O PROJETO TIPR 

O TIPR desenvolve-se dentro da Cátedra Itinerante Inclusão Produtiva Rural, mecanismo criado pelo Núcleo de Pesquisa e Análises sobre Meio Ambiente, Desenvolvimento e Sustentabilidade do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) – uma instituição de estudos e pesquisas multidisciplinares.

 

O núcleo Cebrap Sustentabilidade dedica-se a apoiar inovações na área da temática ambiental. A Cátedra lança regularmente edital de financiamento para apoiar projetos para a inclusão produtiva das populações que vivem nas áreas rurais e interioranas do Brasil. Em 2021, a Rede Brasileira de Pesquisa e Gestão em Desenvolvimento Territorial (Rete) concorreu ao edital com o projeto TIPR, um dos três selecionados à época. No ano seguinte, foi contemplada para segunda fase, com o projeto Produção Rural Inclusiva e Sistemas Alimentares (Prisma)

 

 

PROJETO DOM HÉLDER CÂMARA

Desenvolvido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e financiado pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), traz ações de combate à pobreza, apoio ao desenvolvimento rural sustentável e redução das desigualdades de gênero, raça e etnia.

 

O Projeto Monitora, da Universidade de Brasília, coordenou, avaliou e acompanhou políticas públicas de comercialização e fomento produtivo e de assistência técnica e extensão rural, na segunda fase do projeto.

 

OUTRO OLHAR

A redução da fome no Brasil pede políticas públicas articuladas. Conheça alguns estudos da UnB sobre o tema, como o de Rafael Cabral, sobre as iniciativas de comercialização de produtos da agricultura familiar nos governos estaduais. A premiada pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural teve a orientação de Mário Ávila.

 

NÓS FAZEMOS CIÊNCIA

Mireya Perafán é professora na faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária da UnB. Possui bacharelado em Medicina Veterinária e mestrado em Desenvolvimento Rural, na Colômbia, seu país de origem. Também é doutora em Ciências Sociais (UnB).

 

Mário Ávila é professor em gestão e sustentabilidade na Faculdade UnB Planaltina (FUP). Graduado em Zootecnia, possui mestrado em Administração Rural e doutorado em Desenvolvimento Sustentável.

 

Mauro Del Grossi é professor nos programas de pós-graduação em Gestão Pública e Agronegócios na Faculdade UnB Planaltina. Tem pós-doutorado em Segurança Alimentar pela Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO). Também tem mestrado e doutorado em Economia Agrária.