Falta comida na mesa de pessoas em situação de rua acampanhadas em Brasília (DF). Foto: André Gomes/Secom UnB
Texto: Vanessa Vieira
Ilustrações: Francisco George Lopes
Crise econômica, crise política, fragilização de políticas públicas e pandemia causada pelo novo coronavírus. Essa tempestade do Brasil contemporâneo impulsionou o aumento da pobreza e colocou o país em situação de extrema fragilidade, com 33 milhões de pessoas passando fome em 2022.
Se pobreza e fome são dois lados de uma mesma moeda, o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan) comprova que mais de 90% dos domicílios com renda per capita inferior a um quarto do salário-mínimo possuem algum grau de insegurança alimentar.
Em contrapartida, 67% dos lares com renda per capita maior que um salário-mínimo têm acesso regular a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e sem comprometer outras necessidades essenciais.
Outro dado alarmante é a prevalência da insegurança alimentar em domicílios com três ou mais pessoas de até 18 anos compondo o grupo familiar – sinalizando que crianças e jovens estão entre o público mais vulnerável.
A professora Elisabetta Recine, do Departamento de Nutrição da Universidade de Brasília, explica que a pandemia de covid-19, decretada em 2020, tornou o quadro de insegurança alimentar mais dramático.
“Quando a pandemia chega temos uma queda livre, com a mudança brusca e necessária de toda atividade econômica. As famílias que estavam tentando se equilibrar em trabalhos informais e mal remunerados são as mais atingidas e passam a viver uma situação desesperadora.”
Elisabetta Recine. Foto: André Gomes.
Para complementar a análise, a especialista do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (Opsan/UnB) defende que foi a conjuntura político-econômica a responsável pelo retorno do país ao Mapa da Fome, levantamento das Nações Unidas que retrata a falta de acesso da população à alimentação adequada.
“A regressão [se intensifica] com cortes bruscos e drásticos na Segurança Alimentar e Nutricional provenientes do Teto de Gastos [Emenda Constitucional nº 95/2016]”, completa a doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP).
O II Vigisan destaca que, nesse contexto, as desigualdades se aprofundaram, e a fome volta ao cenário do país como um problema social de dimensões nacionais “e não mais restrito a grupos historicamente vulneráveis, em regiões específicas.”
A doutora em Política Social Anelise Rizzolo de Oliveira lamenta a similaridade do Brasil de hoje com o passado. Nutricionista e professora da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB, ela pontua que a questão da fome entra na agenda pública do país em 1992, com o Movimento pela Ética na Política, que apurou denúncias de corrupção no governo federal.
À época, a mobilização social culminou no combate à fome, por ter considerado como maior escândalo ético o país ter 33 milhões de pessoas nessa condição. “Três décadas depois, nos deparamos novamente com esse número. É uma atrocidade, uma violação à dignidade humana”, exclama Rizzolo.
INSEGURANÇA ALIMENTAR, UMA VIOLAÇÃO À DIGNIDADE HUMANA
Ausência de monitoramento estatístico por órgãos oficiais preocupa setores da sociedade civil, que se articulam pela reestruturação de políticas públicas de combate à fome.
A mais recente Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), acendeu o alerta de que a insegurança alimentar no país crescia a passos largos.
Publicado em 2020, com dados compilados em 2017 e 2018, o levantamento constatou que a insegurança alimentar grave havia saltado de pouco mais de 4% dos domicílios para 9%, a moderada de 6% para 11,5% e a leve de 12,6% para 34,7%. A comparação baseou-se nos dados que se tinha anteriormente, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013.
Alertados pelos dados da POF e pelas possíveis consequências da epidemia do coronavírus, pesquisadores engajados na agenda do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) viram a necessidade de um monitoramento contínuo da questão. Foi o caso da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).
“O próximo levantamento que o IBGE faria para aferir a Ebia [Escala Brasileira de Insegurança Alimentar] seria em 2022, o que significa que passaríamos a pandemia toda sem dados e, no cenário crescente de fome e pobreza, isso nos pareceu inaceitável”, contextualiza Renato Maluf, coordenador do II Vigisan.
Renato Maluf. Foto: Raquel Aviani.
Professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Maluf conta que a Rede congrega pesquisadores experientes na temática, incluindo alguns dos responsáveis pela validação da Ebia no Brasil. Isso possibilitou o desenho de “um inquérito que não apenas preencheu o vazio estatístico, mas obedeceu a uma metodologia que o torna comparável às séries históricas do IBGE”.
O primeiro relatório VIGISAN reuniu dados de dezembro de 2020 e mostrou que a fome no país tinha voltado para patamares equivalentes aos de 2004, com 19,1 milhões de pessoas (9% da população) em insegurança alimentar grave.
O segundo inquérito agregou dados de novembro de 2021 a abril de 2022 e sinalizou a entrada de 14 milhões de brasileiros nas estatísticas da fome, totalizando 33,1 milhões de pessoas (15,2% da população) em insegurança alimentar grave. Com isso, o país regrediu a um patamar equivalente ao da década de 1990.
POLÍTICAS PÚBLICAS
Entre os “retrocessos vividos no país”, a docente Anelise Rizzolo indica a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em 1º de janeiro de 2019, por determinação do governo federal. A unidade de assessoramento da Presidência da República e órgão do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) somente foi reativada em 1º de janeiro de 2023, com a Medida Provisória nº 1.154.
Anelise Rizzolo. Foto: Luis Gustavo Prado.“Sempre foi muito difícil trabalhar na agenda de conflito de interesses do mercado, Estado e sociedade civil. Só que nos últimos anos isso se tornou extremo porque o espaço de escuta e incidência popular não existia, a exemplo da extinção do Consea. Ficou um jogo impossível com o rompimento da estrutura democrática”, pormenoriza Rizzolo, cujo doutorado foi dedicado ao processo de formulação do Sisan.
Presidente do Consea à época da extinção, Elisabetta Recine acrescenta que a ação “feriu de maneira muito profunda o Sistema, por extinguir a instância de articulação dos diferentes sujeitos da sociedade civil e destes com os setores de governo”.
Como atenuante à medida, a pesquisadora menciona que os conselhos estaduais “continuaram atuando dentro das condições e estruturas próprias de cada estado, em diálogo com os municípios”, além da articulação da sociedade civil comprometida com a agenda.
Reconduzida à presidência do órgão, Recine comemora a reativação do Consea. “É a retomada do diálogo oficial, institucional e legítimo entre sociedade civil e governo. Nosso objetivo é dar passos decisivos para aprimorar, ampliar e qualificar diferentes políticas públicas”.
A nutricionista enfatiza que as experiências e o conhecimento gerados pela sociedade civil nos últimos anos devem servir de inspiração para o governo. “O enfrentamento à piora nas condições de vida fez com organizações e coletivos se fortalecessem e diversificassem, mostrando a força das ações de nível local com base territorial e articulando diferentes recursos e atores”.
A agenda da crise climática, que em 2018 já era importante, hoje é “absolutamente inegável”, complementa Recine. “Todos os dados evidenciam o quanto os sistemas alimentares agroindustriais baseados em grande produção, uso intensivo de combustível fóssil, insumos químicos são um modelo insustentável, contribuindo enormemente para a crise climática que estamos vivendo”.
Nessa perspectiva, “a erradicação da fome deve estar articulada à implementação de modelos de produção e práticas de consumo alimentar cuja matriz estruturante seja a sustentabilidade ambiental, social, econômica e cultural”, conclui a presidenta do Consea.
EXEMPLO PARA O MUNDO?
Há, no país, modelos de boas práticas de políticas públicas para garantir o Direito Humano à Alimentação Adequada. Uma delas é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Popularmente conhecido como merenda escolar, é uma das maiores iniciativas neste sentido no mundo e a única com atendimento universalizado, de acordo com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
As origens do Pnae remontam à década de 1940, quando começaram as discussões sobre a oferta de alimentação nas escolas pelo governo federal. Começou a ser implementado apenas em 1955, com a Campanha de Merenda Escolar, e recebeu o atual nome a partir de 1979.
De lá para cá, avanços consideráveis foram obtidos, como a determinação de que 30% dos recursos sejam para a compra direta de produtos da agricultura familiar – favorecendo o desenvolvimento econômico e sustentável das comunidades locais.
Outra iniciativa exitosa é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003. Pela iniciativa, o governo compra alimentos produzidos pela agricultura familiar e os destina a pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional, como àquelas atendidas pelas redes de assistência social, pelas unidades de segurança alimentar e nutricional ou por instituições públicas e filantrópicas de ensino.
“O Pnae e o PAA constituem o desenho mais arrojado de políticas públicas que poderíamos fazer, porque é intersetorial, foi uma construção da sociedade civil e, ao estipular um percentual de aquisição dos alimentos vindos da agricultura familiar, cria uma sinergia entre políticas públicas afirmativas de direitos”, avalia Anelise Rizzolo.
A pesquisadora menciona experiências em que a família produz o alimento comprado pela escola onde o filho estuda ou de municípios que adquirem os alimentos da agricultura familiar para seus restaurantes comunitários e hospitais, fortalecendo a comunidade local com a geração de renda a partir daquele território.
PRODUZIR MAIS ALIMENTOS NÃO ACABA COM A FOME
Segundo especialistas, solução para insegurança alimentar está nas políticas públicas de valorização da agricultura familiar e de redução da desigualdade econômica e social no campo.
Apesar de seu papel decisivo na segurança alimentar do país, a agricultura familiar responde por apenas 23% (R$ 106,5 bi) do valor total da produção agropecuária, segundo o Censo. A fatia restante (R$ 335,9 bi) é gerada pelos pequenos, médios e grandes estabelecimentos, tendo como alavanca a produção de soja e milho em grande escala para exportação, as chamadas commodities agrícolas.
São considerados como estabelecimentos de agricultura familiar aqueles de pequeno porte (até quatro módulos fiscais), com pelo menos metade da força de trabalho da própria família e cuja atividade compõe, no mínimo, metade da renda deste núcleo.
Essa configuração ajuda a entender o porquê de, apesar de representar 77% dos estabelecimentos agrícolas do país, a agricultura familiar ocupa uma área equivalente a 23% das terras rurais. Por outro lado, menos de um por cento (0,91%) dos estabelecimentos acima de mil hectares, portanto, do agronegócio, detém quase a metade das terras cultivadas (47,5%).
“A agricultura familiar emprega o maior número de pessoas no campo e responde pela diversidade da produção alimentar. Contraditoriamente, é a que menos recebe incentivo e orçamento público e menos condições para produzir, comercializar e escoar seus produtos. Essa é a grande questão que precisamos enfrentar”, avalia Elisabetta Recine.
DESIGUALDADE NO CAMPO
Docente nos programas de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (Mader) e de Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (Mespt) da UnB Planaltina, Sérgio Sauer enfatiza que “a agricultura familiar, os povos e as comunidades tradicionais e os produtores familiares de alimentos sofrem do mesmo problema estrutural da sociedade brasileira, ou seja, uma profunda desigualdade social e econômica”. E afirma: “essa é a explicação da insegurança alimentar no campo”.
A desigualdade explícita no acesso à terra também se faz presente “no acesso a políticas públicas como, por exemplo, ao crédito diferenciado para a produção agrícola e investimentos no desenvolvimento rural”, acrescenta o docente.
Sauer destaca que por “opções políticas e econômicas históricas, a economia brasileira é refém das exportações de commodities agrícolas, especialmente soja e derivados, principal atividade do agronegócio” e alerta que “essa importância econômica não pode ser confundida com segurança alimentar ou produção de alimentos”.
Para Anelise Rizzolo, a soberania alimentar – autonomia que os países precisam ter para decidir o que vão plantar – é algo quase impossível no mundo atual. “No Brasil, isso é muito forte porque priorizamos a produção de acordo com o interesse internacional”. Significa que para o país se estabelecer como celeiro do mundo, ele “vive a lógica do agronegócio, voltada para produção de commodities de soja, algodão, milho, eucalipto”.
Membro da Rede Penssan e doutor em Ciências Sociais na área de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Renato Carvalheira critica o modelo do agronegócio por “concentrar a maior parte da população em condições de trabalho análoga à escravidão, praticar a menor média salarial para trabalhadores, ser mais preocupado em vender suas commodities do que em acabar com a fome, além de ocasionar danos ao meio ambiente com queimadas e uso de venenos [agrotóxicos], inclusive de produtos proibidos na Europa, mas comercializados em nosso país”.
Questionado sobre os paralelos entre o Brasil atual com o país de 70 anos atrás, Carvalheira responde: “permanece o modelo de desenvolvimento econômico e social agroexportador, assim como era quando Josué de Castro [autor do livro Geografia da Fome] denunciou a fome como uma questão social. Os ciclos eram de outros produtos primários, mas a produção agora é mais forte do que nunca, porque antes tínhamos uma indústria crescente e hoje passamos pela desindustrialização”.
Ela chama atenção para o aspecto da financeirização resultante dinâmica globalizada de produção de alimentos: “a próxima safra, ainda não plantada, já está negociada nos mercados de ações. Décadas atrás não havia essa agressividade e captura dos sistemas alimentares por grandes corporações – elas controlam o que comemos”.
Elisabetta Recine explica que as grandes cadeias de supermercado que existem no mundo hoje são também as que concentram a comercialização de alimentos no Brasil. “O sistema alimentar tende a concentrar desde a produção de sementes, maquinários e alimentos até o abastecimento e a comercialização. Isso é um risco enorme para a soberania dos países porque não são mais os interesses públicos ou comuns que dirigem as decisões, mas os interesses comerciais e privados. Estamos falando de concentração econômica, de poder e de conhecimento.”
Para enfrentar um cenário globalmente desafiador, Recine acredita em uma mudança de perspectiva: “um desenvolvimento compartilhado, que faça com que a gente não compreenda mais nossa sociedade para poucos, e sim para todos”.
Sérgio Sauer acrescenta que a solução está em ações estatais estruturantes, incluindo políticas de acesso à terra, como reforma agrária, acompanhadas de outras políticas públicas para as populações do campo, como assistência técnica, acesso a crédito, construção de infraestrutura e garantia de outros direitos como educação e saúde.
“São medidas para cumprir a Constituição brasileira e executar os programas de reforma agrária, desapropriando terras que não cumprem sua função socioambiental e dando acesso à terra às famílias sem terra ou com pouca terra, garantindo direitos territoriais”, detalha Sauer. O docente reforça que, se acompanhadas de outras políticas públicas, “resultam na diminuição da desigualdade e, consequentemente, na diminuição da insegurança alimentar e na melhoria da vida no campo”.
RETRATOS DA FOME