Educação de qualidade como direito de todos os brasileiros

 

Texto Márcia Abrahão Moura*

 

Constituição de 1988 trouxe uma série de inovações para a legislação brasileira no que diz respeito à educação. Resultado de forte pressão social, o artigo nº 205 estabeleceu a educação como um direito de todos e um dever do Estado. Se, até então, o ensino público era visto quase como uma bondade dos governos (com forte viés assistencialista), com a Carta Magna, passou a ser entendido – ao menos na letra da lei – como algo a que todas as pessoas têm direito, não importando suas origens étnicas e socioeconômicas.

 

Outro importante princípio consagrado na Constituição é o da igualdade, mas entendida em sentido amplo, de equidade. Isso significa que nossa principal lei, que está acima de todos os demais normativos, compreende os muitos contextos desiguais da sociedade, que demandam olhares diferenciados, adequados à realidade das pessoas.

 

As instituições públicas de ensino superior incorporaram essas premissas; é certo que não sem um tempo de maturação. Na Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, as cotas para negros foram instituídas em 2004, depois de estudo interno, realizado por docentes da UnB, revelar que menos de 2% dos professores eram pretos ou pardos.

 

Em 2014, essa política de ação afirmativa foi revisada e novos percentuais de reserva de vagas, estabelecidos. Também naquele ano, houve a adoção das cotas para estudantes oriundos de escolas públicas, como forma de dar oportunidades mais equânimes para jovens por vezes excluídos do sistema público de ensino superior. A UnB foi também pioneira na criação de um vestibular específico para candidatos indígenas, com provas realizadas em polos no interior do Brasil.

 

Não foi somente a reserva de vagas que imprimiu um caráter mais democrático à Universidade. Geograficamente, a Instituição também se abriu. Foram criados novos campi fora do Plano Piloto: primeiro, em Planaltina, em 2006 e, a partir de 2008, com o impulso dado pelo Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), em Ceilândia e no Gama. Além disso, houve a abertura de cursos noturnos, no início da década de 1990, com uma expansão a partir de 2008, o que tornou a Universidade um local mais acessível para estudantes trabalhadores.

 

Assim, e para descrever de forma sucinta, a UnB se coloriu. Passou a cumprir de maneira mais efetiva a missão institucional cidadã inscrita na Constituição Federal e em seu estatuto e regimento. Ganhamos em inclusão e academicamente, uma vez que a produção de conhecimento passou a vir com perspectivas até então excluídas do ambiente universitário. E isso sem perder em qualidade, pelo contrário. Nos últimos dois anos, a UnB subiu três posições no Times Higher Education (THE), um dos mais importantes rankings do mundo. De acordo com o THE 2020, somos a 15ª melhor universidade da América Latina, a oitava entre as brasileiras e a quinta se considerarmos apenas as federais. Nossos indicadores de produção científica e de inovação também têm subido fortemente desde o início da expansão.

 

A despeito disso tudo – e lamentavelmente – vivemos, agora, um constante questionamento em relação ao papel das instituições públicas de ensino superior, além de frequentes reduções orçamentárias por parte do governo federal. Somos criticados, ainda, por permitir o amplo debate de ideias nas universidades, quando se sabe que é a partir do debate livre que surgem respostas a desafios ou mesmo ideias inovadoras.

As metas do Plano Nacional de Educação (PNE) também parecem estar sendo ignoradas. Para a graduação, por exemplo, o objetivo era elevar a taxa bruta de matrículas para 50% da população entre 18 e 24 anos até 2024 e expandir as matrículas no setor público em pelo menos 40%. Até 2017, contudo, estávamos em apenas 11,8% na rede pública.

 

Se fizermos uma comparação com países desenvolvidos, a situação também é alarmante. De acordo com o estudo Education at a Glance, publicado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em setembro deste ano, 21% dos jovens brasileiros estavam na graduação em 2018, menos da metade da média dos países da OCDE, de 44%. Em relação à pós-graduação, apenas 0,8% dos adultos no Brasil têm mestrado e 0,2%, doutorado, enquanto a média da OCDE é de 13% e 1,1%, respectivamente. Assistimos também a um crescente descrédito quanto às contribuições da ciência, importante motor do desenvolvimento em qualquer país.

 

É nesse cenário que publicamos esta edição da Darcy, a revista de jornalismo científico e cultural da UnB. A temática que domina este número é necessária e urgente: o poder transformador da educação. Cabe a nós, nas universidades e demais instituições públicas de ensino, reafirmar esse potencial, em diálogo com os mais diversos públicos, mesmo (e principalmente) com os que não concordam conosco.

 

À frente, que este é apenas mais um dos desafios de uma instituição educadora.

 

* Reitora da Universidade de Brasília

 


 

Afetividade: um ciclo que precisa ser (re)pensado

 

Texto Moacir N. Ferreira Junior*

 

Era por volta de 11 horas da manhã. Estava na fila de espera em um hospital para um raio-x quando, de repente, ouço meu nome ser chamado. Levantei-me para o atendimento, mas fui subitamente surpreendido pela frase que se seguiu: “professor, que honra poder atender o senhor!”. Era de um ex-aluno de ensino médio de minha escola, a quem havia dedicado dois anos de minha vida para a sua aprendizagem. Estava ali, em sua área de trabalho, prestes a concluir sua faculdade, já inserido no mercado de trabalho. Não sei de quem era a maior satisfação, se dele, por me atender, ou minha, por naquele momento ver o resultado da afetividade traduzido nas emoções. A expressão de seu respeito e gratidão demonstravam o fechamento de um ciclo de afetividade.

 

“Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva”. A frase de Rubem Alves soa como um convite muito especial para pensarmos sobre a relação entre os termos ‘aprendizagem’ e ‘experiência afetiva’, termos que nem sempre são utilizados de forma complementar.

 

Compreender, primeiramente, o que é realmente afeto muda também nossa compreensão de sua importância na aprendizagem. A palavra ‘afeto’ remonta etimologicamente à possibilidade de exercer certa influência sobre alguém ou sobre algo. É um percurso intencional, com um objetivo claro. É a ação premeditada de tentar alcançar o outro. E nesse sentido, afetividade tem muito mais a ver com o percurso (planejamento) do que com o resultado (emoção). Infelizmente uma grande parcela dos problemas de aprendizagem na escola é gerada por se esperar a emoção do sucesso na aprendizagem antes de se construir a afetividade na relação de aprendizagem.

 

O PERCURSO DO AFETO

O ciclo da afetividade na aprendizagem inicia-se com a intencionalidade na preparação do trabalho pedagógico. Deve-se ter em mente que o estudante está sendo preparado para a vida. Assim, sua aprendizagem deve ser promovida de forma significativa, ensinando-o a desenvolver autonomia para o exercício de sua cidadania. A intencionalidade do planejamento e a promoção de uma aprendizagem pensada para o estudante e seus desafios é uma atitude de afeto. A aprendizagem afetiva deve ser direcionada para promover um ambiente em que o estudante cresça, se desenvolva e tenha possibilidade de errar, repensar o erro, reparar e seguir. Assim, com o percurso da afetividade na aprendizagem, vem o resultado esperado: a emoção.

 

A emoção é o filtro das memórias na aprendizagem. A memória se forma por um movimento entre o hipocampo e o córtex e, uma vez que o hipocampo fica envolto pelo sistema límbico, isso faz com que toda memória passe pelo crivo da emoção. Assim, por meio da construção de uma experiência afetiva com responsabilidade, é possível desenvolver um caminho para que a geração das emoções na aprendizagem seja positiva. O resultado emotivo são os sentimentos de cuidado, de acolhimento, de respeito e de gratidão que os alunos têm por muitos professores que passam por suas vidas.

 

O AFETO NA ESCOLA 

No entanto, é um grande equívoco esperar o sucesso da afetividade na sala de aula sem pensar na macroestrutura escolar.  Em uma escola, o desenvolvimento da afetividade deve ser pensado em várias esferas. Uma gestão que planeja, orienta e garante um ambiente de trabalho saudável para o professor, formando uma consciência de equipe, está desenvolvendo afetividade; uma equipe de coordenação que planeja a formação continuada dos professores e torna real a interdisciplinaridade está desenvolvendo afetividade. Professores que revisitam seus planejamentos e criam aulas levando em consideração quais conteúdos serão significativos para a vida do estudante também exercem afetividade. Ensinar o estudante a conhecer suas potencialidades e as melhores formas de aprender conteúdos, criando um ambiente solidário para que ele formule suas hipóteses sem medo de errar é desenvolver afetividade. Uma real experiência afetiva na escola é capaz de gerar emoções saudáveis não só para os estudantes, mas para toda a comunidade escolar.

 

Professores e estudantes passam, pelo menos, cinco horas do seu dia na escola e muitas vezes esse tempo é maior em razão de atividades extraclasse, trabalhos e aulas extras. Isso quer dizer que o tempo experienciado ali muitas vezes é maior que o tempo vivido com suas famílias. Por isso, é tão comum ouvirmos que a escola é uma segunda casa. Porém, só desejamos voltar para casa quando ela representa algo além da estrutura física, quando criamos laços, quando as relações de afeto estabelecem emoções saudáveis. Analogamente, o mesmo ocorre com a escola. Precisamos criar um lugar acolhedor (e podemos fazer isso!), um ambiente solidário, motivador, em que todos possam se sentir respeitados, vistos e ouvidos. Um lugar para o qual sempre sentiremos vontade de retornar.

 

* Doutor em Linguística (UnB), pesquisador do grupo Novas Metodologias para o Ensino de Gramática (UnB) e professor da Secretaria de Educação do DF há 15 anos.

 


 

A Importância do Conhecimento Teórico Fundamental

 

Texto Samuel J. Simon*

 

Roger Kornberg, Prêmio Nobel de Química de 2006, em recente entrevista1, fez uma afirmação que resume bem o lugar da pesquisa teórica fundamental contemporânea: “uma descoberta, por definição, não pode ser prevista”. Essa frase diz muito do que se desenvolve atualmente em universidades e centros de pesquisa em todo mundo. São pesquisas que, muitas vezes, não produzem resultados imediatos, essencialmente por que não sabemos como podem ser utilizadas, assim que são concluídas. No entanto, são a base de toda a tecnologia desenvolvida pela humanidade. Também como lembra Kornberg, a pesquisa científica fundamental pode levar anos até produzir algum resultado. “Nunca fiz nada em menos de 20 anos”, afirma na entrevista2.

 

Um importante aspecto, não abordado por Kornberg, refere-se à inserção das teorias científicas nas longas tradições de estudos e, após o século XVII, em testes cada vez mais rigorosos e complexos. Um caso, mais do que exemplar, pois faz parte da própria criação da Física como disciplina, são os estudos realizados a partir do século XIV sobre a concepção de movimento de Aristóteles. Como bem mostra Alistair Crombie3, filósofos do século XIV, ao mesmo tempo em que buscavam situar as concepções aristotélicas de movimento, realizaram uma crítica importante, que conduziu aos trabalhos de Galileu Galilei, René Descartes e Isaac Newton, fundadores da física clássica. E a mecânica newtoniana tornou-se a base teórica da Física, especialmente com o uso do cálculo infinitesimal e integral, outra conquista teórica do pensamento humano. 

 

Três outros exemplos são ilustrativos do quanto esse tipo de pesquisa pode produzir resultados extremamente importantes. Nos anos 1860, James Clerck Maxwell, utilizando o conceito de campo, desenvolvido anos antes por Michael Faraday4, apresenta o conjunto de equações que fazem a síntese de todos os resultados conhecidos em eletricidade e magnetismo. E a partir de suas equações, teoricamente, Maxwell identifica as ondas eletromagnéticas, que só foram detectadas experimentalmente por Heinrich Hertz, em 1886. Em pouco tempo, essas ondas mudaram a face tecnológica do planeta. 

 

Um segundo caso muito interessante (e, novamente, fundamental) são os trabalhos do monge Gregor Mendel, que, em 1865, apresentou as bases da genética em seu trabalho sobre as leis da hereditariedade. Inicialmente pouco considerados, foram redescobertos no início do século XX. Hoje, a genética constitui um dos pilares da síntese evolutiva moderna, incorporando o impressionante trabalho de Charles Darwin. E agora sabemos o quanto o conhecimento da genética pode salvar vidas humanas5

 

Finalmente, um dos exemplos mais marcantes é a famosa equação E=mc2, obtida por Albert Einstein, em 19076. Os primeiros estudos de Einstein para a obtenção dessa equação foram feitos em 1905, a partir da Teoria da Relatividade Restrita. Um aspecto importante no trabalho sobre a Teoria da Relatividade é o lugar e a importância do princípio de relatividade, que, ao lado do princípio da constância da velocidade da luz no vácuo, constitui um dos pilares desta Teoria. E a história do princípio de relatividade é notável: ele começa a ser intuído nos primórdios dos estudos sobre o movimento da Terra, no contexto do modelo heliocêntrico, no século XIV, com Nicole D’Oresme, que propõe esse modelo como uma hipótese. Os trabalhos posteriores de Nicolau Copérnico sobre o modelo heliocêntrico, aliado aos estudos do movimento relativo feitos por Giordano Bruno, Galileu Galilei e, posteriormente, por Isaac Newton, consolidam a importância desse princípio na Física. Segundo o princípio de relatividade clássico, as leis da mecânica (ou as equações que descrevem essas leis) são as mesmas para sistemas em movimento inercial. Isto é, os fenômenos físicos (mecânicos) em um navio em movimento uniforme (esse é o exemplo recorrente nos primeiros escritos sobre o princípio de relatividade) são os mesmos em terra firme. Einstein, precedido pelos estudos de Henri Poincaré e Hendrik Lorentz, incluiu, nesse princípio, os fenômenos eletromagnéticos.

 

Nesse sentido, a Teoria da Relatividade Restrita enuncia que as leis da natureza, incluindo o eletromagnetismo (ou, novamente, as equações que as descrevem), são as mesmas para sistemas inerciais. E a Teoria da Relatividade Geral é uma generalização da Teoria da Relatividade Restrita, inclusive no que se refere ao lugar do princípio de relatividade (as leis da natureza são as mesmas para todos os sistemas físicos, inclusive não inerciais, ou seja, acelerados). Os sofisticados instrumentos de GPS, utilizados em grandes aeroportos, empregam correções a partir da Teoria da Relatividade Geral. 

 

Os exemplos mostram que a pesquisa científica fundamental, livre (eticamente conduzida), sem fronteiras e sem exigências de aplicações imediatas, em todos os domínios do conhecimento, é parte essencial do desenvolvimento científico. Porém, sem recursos intelectuais (e materiais) e sem liberdade, ela perece. Se perecer, também perecerá a civilização. 

 

*  Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UnB, onde graduou-se em Física. Doutor em Filosofia da Ciência pela Universidade de Paris, França, e mestre em Física pela Universidade de São Paulo (USP).

1  https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/08/ciencia/1562590067_810342.html

2 “Muitas pesquisas exigem décadas. Eu nunca fiz nada em menos de 20 anos”. Op.cit.

3  Crombie, A. Augustine to Galileo-The History of Science: AD 400-1650. Cambridge: Harvard University Press, 1953.

4  Para um estudo aprofundado sobre a noção de campo, ver o excelente livro de Mary Hess, Force and Fields – The Concept of Action at a Distance in the History of Physics. New York: Dover Publications, 2005.

5  Poderíamos citar inúmeros outros trabalhos teóricos fundamentais em Biologia e mesmo em Medicina, como, por exemplo, a descoberta do vírus, que conduziu às vacinas, cuja eficácia é contestada por grupos obscurantistas!

6  A equação E=mc2 é a base da energia atômica. No entanto, aplicações oriundas de descobertas como essas dependem de desenvolvimentos tecnológicos e seus usos de decisões políticas e econômicas. O cientista, no processo de descoberta, não tem como prever suas aplicações, exatamente por se tratar de pesquisa fundamental. Atualmente, um exemplo impressionante é o acelerador de partículas do CERN, a maior máquina construída pelo ser humano até hoje, que busca detectar e compreender as propriedades das partículas (e campos) mais fundamentais da natureza.