DOSSIÊ

Manifestações coletivas de doenças marcaram a história da humanidade. Porém, apesar de inúmeras semelhanças, o surto do novo coronavírus é inédito em vários aspectos. O momento é sem paralelo na história, mas, se não fosse o aprendizado do passado, os rumos poderiam ter sido ainda mais trágicos

 

 

 

 

Texto Robson Rodrigues

 

Que novos vírus surgiriam, isso estava claro para a comunidade científica. A pergunta era quando. Porém, poucos previram a chegada do novo coronavírus especificamente e suas exatas consequências. Mesmo com uma linha do tempo marcada e transformada por epidemias, o mundo vive diversos aspectos inéditos com a covid-19. Porém, em alguns pontos, a história se repete: pânico, desinformação, culpabilizações infundadas, receitas milagrosas para a cura. Mas, afinal, o que causa uma pandemia? Os fatores são múltiplos e incluem aglomerações populacionais, contato com animais silvestres, deficiências na estrutura sanitária, entre outros. E por trás de todos eles, está um agente em comum: a ação humana.

 

Quanto mais urbanizados os humanos se tornaram, dominando a natureza, construindo cidades e rotas de comércio que conectam lugares distantes, mais suscetíveis ficaram às epidemias. E quando aparece uma forte ameaça causada por microrganismo, a sociedade tem que se reorganizar e criar medidas para reduzir danos.

 

A vantagem, hoje, é que temos recursos tecnológicos que permitem entender um pouco melhor o agente infeccioso, como ele se comporta e por onde viaja, apesar dos vários mistérios que envolvem ainda o novo coronavírus. Por outro lado, as redes sociais ampliam a disseminação de notícias falsas, o que atrapalha o controle sanitário.

 

O mundo já viveu epidemias tão mortais como a covid-19, a exemplo da praga de Justiano, a peste negra, a gripe espanhola, o HIV/Aids, entre outras. Cada uma matou dezenas de milhões de pessoas.

 

Também não é a primeira vez que os coronavírus causam preocupação. A infecção atual de Sars-Cov-2 é parente da Sars-Cov-1 (do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome), responsável pela contaminação de cerca de 8 mil pessoas em 29 países entre 2002 e 2004. Em 2012, outro coronavírus, o Mers-Cov (do inglês, MIddle East Respiratory Syndrome), atingiu 2.220 pessoas no Sudoeste Asiático.

 

Em resposta às ameaças microscópicas, a comunidade internacional se organizou no início do século 21 para estabelecer medidas unificadas de enfrentamento às epidemias, o que garantiu uma redução de danos significativa na pandemia de 2020.

 

Semelhanças e diferenças

Até o fim do século 19, pouca coisa tinha se aprendido com as epidemias. Somente quando se descobriu que microrganismos, como as bactérias, podem provocar doenças, foi possível pensar em medidas comprovadamente eficazes para prevenir infecções. Passou-se a tratar a água para consumo, direcionar esgoto, aumentar cuidados de higiene pessoal, isolar pessoas que tinham doenças específicas. A mortalidade caiu drasticamente com essas ações. Então, com a descoberta dos primeiros antibióticos e o desenvolvimento das vacinas, a humanidade entrou em outra etapa da história.

 

O infectologista Stefan Cunha Ujvari, autor do livro História das epidemias (ed. Contexto LV, 2020) e médico do Hospital Oswaldo Cruz, conta que a demora em reconhecer as doenças se repetiu ao longo do tempo. “As epidemias geram pânico, diminuem o comércio, atrapalham a economia. Então os governantes, historicamente, sempre negaram o problema inicialmente”, explica.

 

Para o pesquisador, isso atrapalha colocar em prática medidas de combate às doenças. Ele usa como exemplo a epidemia de meningite no Brasil, durante os anos 1970, quando os militares, então no poder, tentaram esconder informações da população, proibindo médicos e a imprensa de falarem sobre o assunto.

 

Segundo Stefan Cunha Ujvari, as maiores epidemias guardam muita coisa em comum. “As semelhanças são impressionantes. As pessoas sempre entram pânico. Ficam desesperadas sem entender o que está acontecendo, e também ansiosas por uma resposta, um tratamento rápido. Elas passam a cobrar mais dos órgãos do governo por medidas eficazes porque estão em pânico. Surge então uma variedade de medicamentos que seriam a salvação. Começa-se a acreditar em diversas fórmulas, chás, alimentos. Também aparecem as fakes news, ou os boatos, que sempre estiveram presentes nas epidemias ao longo da história”, resume o especialista.

 

Era comum que surgissem remédios supostamente milagrosos que ganhavam adesão popular apesar da eficácia contestada em laboratório. Algo similar ao que ocorre hoje, com a indicação de uso de uma série de medicamentos para o tratamento da covid-19 que ainda carecem de comprovação científica.

 

A origem animal do coronavírus seria outro ponto em comum da covid-19 com a maioria das doenças infectocontagiosas humanas. “Assim como o HIV, que veio de um animal silvestre, o chimpanzé”, compara Ujvari.

 

Apesar das inúmeras semelhanças que a epidemia do novo coronavírus tem com outras do passado, o momento é sem paralelo na história. É a primeira vez que praticamente o mundo todo fecha fronteiras, aplica distanciamento social e lockdow (bloqueio total), uma medida de segurança radical em que o cidadão fica proibido pelo governo de sair de casa e circular por áreas públicas sem motivo emergencial.

A internet, bem mais difundida do que dez anos atrás, também entrou em cena. Segundo o pesquisador Georgios Pappas Júnior, professor do Departamento de Biologia Molecular da Universidade de Brasília (UnB), vivemos um cenário sem precedentes. “A primeira pandemia da era da conectividade social pela internet teve como consequência uma outra pandemia, não biológica, caracterizada por narrativas não científicas que espalham, em profusão, notícias falsas sobre origem, prevenção, contenção e tratamentos”, explica o docente.

 

“Neste contexto, cientistas são encarados em um gradiente que vai desde vilões até salvadores”, completa Georgios Pappas, que também ressalta que uma das particularidades da covid-19 é a ampla manifestação de quadros clínicos, que variam de assintomáticos até graves síndromes respiratórias.

 

Experiências passadas

Segundo o pesquisador Georgios Pappas Júnior, o surgimento de aglomerados populacionais propiciou o aparecimento das primeiras epidemias. “O estabelecimento da agricultura desencadeia a organização da sociedade humana em cidades. Essa aglomeração fornece aos agentes patogênicos condições para uma rede de disseminação ampla, seja na forma de contato pessoal, seja pelo ar, como ocorre com a covid-19 e a gripe, por exemplo”, explica o docente.

 

Outro agravante é o contato com animais silvestres em diferentes partes do mundo, principalmente pela domesticação. Sabe-se que o vírus do sarampo acometia o gado (que gerava a peste do gado), cuja domesticação propiciou aos humanos contato com o vírus de origem zoonótica. De forma semelhante, evidências mostram que a varíola teria sofrido mutação a partir da criação de camelos.

 

Durante o Império Romano, que começou em 27 a.C. e terminou em 476 d.C., a cidade de Roma concentrava um milhão de pessoas e fazia conexão com diversas partes do mundo. A capital possuía sistemas sofisticados de esgoto e aqueduto, casas de banho e banheiros públicos. Essa estrutura sanitária e os hábitos de higiene deixaram a cidade livre de infecções por comida e água. Mas foi lá também que surgiram as primeiras grandes epidemias. Ao todo, 11 pestes assolaram a região. Entre elas, varíola e sarampo. Isso pode ser explicado pela troca de agentes infecciosos com outras partes do mundo e por a cidade abrigar grande população pobre, que muitas vezes morava em casas pequenas com várias pessoas.

 

No século 14, a população europeia tinha se expandido e concentrava cerca de 75 milhões de habitantes. O comércio, alavancado pelas cruzadas, fervilhava. O ambiente foi propício para a peste negra, considerada a pandemia mais letal da história. A doença, provocada pela bactéria Yersinia pestis, provavelmente disseminou-se na Europa a partir de uma das colônias da antiga República de Gênova, região atualmente localizada no norte da Itália. Era transmitida principalmente por pulgas, que tinham como principal hospedeiro os ratos, levados no porão das embarcações. As pulgas saltavam dos roedores quando o hospedeiro morria e infectavam as pessoas. A doença foi batizada de peste negra, pois deixava as extremidades enegrecidas pela falta de pressão no corpo, em decorrência da generalização da infecção pelos vasos sanguíneos. Caso a bactéria chegasse ao pulmão, podia ser expelida também pela tosse, aumentando as fontes de contaminação.

 

A peste varreu todo o continente em dois anos. Estima-se que um terço da população europeia tenha morrido por complicações da doença. A tragédia também atrapalhava a economia ao reduzir o comércio em função das mortes. “Na Idade Média, o saneamento básico criado no Império Romano foi perdido. A população usava água do rio com dejetos humanos. Por isso, epidemias de diarreias eram muito frequentes”, explica o infectologista Stefan Cunha Ujvari. “Eram outros tempos, e era muito mais difícil combater as infecções porque se desconhecia a origem delas. Na peste negra, os ratos circulavam nas casas e nem se imaginava que eram a fonte da contaminação”, contextualiza.

 

Segundo ele, os judeus foram culpados por provocar a epidemia, perseguidos e mortos. Noutra tentativa de se livrar do agente infeccioso por meio da superstição, as pessoas doentes se autoflagelavam para se purificar dos pecados.

Apesar do impacto devastador da peste negra, segundo Stefan Ujvari, em números absolutos, o extermínio de indígenas dos continentes americanos por conta de epidemias foi superior. Os europeus trouxeram o sarampo, a varíola e a gripe para uma população que nunca tinha tido contato com esses agentes. Segundo ele, mais da metade dos índios americanos morreram ao longo dos séculos por essas doenças.

 

O número de epidemias saltou no século 19. A Revolução Industrial favoreceu a disseminação de doenças, por conta do crescimento das cidades. A classe operária era má alimentada e várias famílias precisavam dividir espaços pequenos em cortiços. Essas condições favoreciam a transmissão de doenças de pessoa para pessoa. Foi o século da tuberculose, difteria, coqueluche, escarlatina, além das epidemias que persistiam ali, como a de sarampo e de varíola. “Em várias cidades industriais, metade das crianças não chegava aos cinco anos de idade. Nas cidades, também havia muitas nuvens de fuligem, que impediam a entrada de luz do sol. Com isso, epidemia de raquitismo era tão comum quanto a epidemia de obesidade atualmente, observa Stefan Cunha Ujvari.

 

Num dos cortiços que visitou, o médico inglês John Snow (1813-1858) observou que o sistema de esgoto tinha rachaduras que possibilitavam que a água consumida fosse contaminada com dejetos humanos. Foi a primeira evidência que teve para explicar a epidemia de cólera iniciada em meados dos anos 1850, que provocava diarreias persistentes e descoramento da pele, matando mais de 20 mil britânicos em uma década. Sua convicção de que a água contaminada carregava os microorganismos (bactérias) agentes da doença sofreram rejeição numa época em que ainda se acreditava na existências de miasmas (nome dado a ares de odor pútrido que se supunha provocar doenças). Ele insistiu em defender sua tese e, após diversas demonstrações, provou que a cólera está ligada diretamente ao saneamento básico e aos hábitos de higiene.

 

No século seguinte, a gripe espanhola matou entre 20 e 50 milhões de pessoas em todo o mundo. Apesar do nome, a ideia mais aceita é a de que a enfermidade tenha surgido nos Estados Unidos, em campos de soldados que se preparavam para lutar na 1ª Guerra Mundial. Foi levada para a Europa, depois se espalhou pelo mundo, matando bem mais do que a disputa bélica. É causada por um vírus influenza, subtipo H1N1, e transmitida por meio de secreções 

respiratórias. Em função dela, grandes eventos foram cancelados, na época, para evitar aglomerações, estádios viraram posto de atendimento para dar conta da demanda. Surgiu o movimento batizado de Liga Anti-Máscara.

 

A médica veterinária e professora de Agronomia e Medicina Veterinária da UnB Lígia Maria Cantarino da Costa compara a gripe espanhola com a atual pandemia: “É interessante ver nos jornais da época como a população se comportava e as medidas de contenção adotadas. Havia uma forte negação da gravidade da doença, as pessoas se recusavam a ficar em casa. Comparando, as ações são muito parecidas com as de hoje”.

 

Stefan Cunha Ujvari conta que os falsos tratamentos eram muito procurados. “Quando a mortalidade da doença ficou evidente para a população, começaram o pânico e as receitas milagrosas. Acreditava-se que a cachaça poderia curar porque esterilizava a garganta. Faziam também gargarejo com substâncias de eucalipto, alho ou limão. Esgotaram esses ingredientes nos mercados”, afirma o infectologista, lembrando que a famosa caipirinha surgiu como um remédio alternativo da época para a doença. Segundo ele, o quinino foi outro remédio considerado milagroso usado durante a gripe espanhola. O curioso é que a substância usada para tratar malária é parente da cloroquina, pois ambos possuem similaridades em suas estruturas químicas.

 

Redução de danos

Nos últimos 20 anos, cinco grandes crises sanitárias se espalharam por diferentes partes do globo: Sars (2002), gripe aviária (2003), gripe suína (2009) e ebola (que teve os principais surtos no anos 1970 e reapareceu em 2000), todas mais brandas do que as vistas nos séculos anteriores. E a comunidade internacional estava relativamente organizada para uma crise futura. No início deste século, começaram os esforços no mundo para se preparar para a potencial ameaça da influenza aviária (IA) de alta patogenicidade, muito mais mortal do que o novo coronavírus.

 

“Por sorte, ela não ocorreu, tendo se manifestado apenas em poucas regiões”, avalia a pesquisadora Lígia da Costa. “A suspeita sobre essa influenza contribui para que o Brasil se organizasse diante de um Regulamento Sanitário Internacional (RSI)”, explica. O RSI, ao qual a especialista se refere, é um acordo revisado e restabelecido em 2005 pelos 196 países em todo o mundo. O trabalho unificado lança estratégias de prevenção, divulgação e controle da cólera, peste, febre amarela e, mais recentemente, da IA de Alta Patogenicidade.

 

“Quando começaram a surgir os primeiros casos da influenza de 2009, já se tinha grupos de trabalhos para esse tipo de enfrentamento”, recorda a docente da UnB. Com isso, o arcabouço sanitário, as legislações e as estratégias de ação para a covid-19 foram desenvolvidas mais agilmente. Ela acrescenta que “o Brasil tem uma potência a seu favor que é o Sistema Único de Saúde (SUS), que permite criar ações de forma padronizada. É uma estrutura sanitária importantíssima”, avalia.

 

Problemas recorrentes

O desenvolvimento de vacinas fez com que doenças fossem extintas. A varíola foi a primeira, 40 anos atrás. Em 2016, foi anunciado que as Américas erradicaram o sarampo graças às campanhas de vacinação. No entanto, a doença provocada por vírus voltou a ameaçar dois anos depois e chegou a contaminar mais de 10 mil pessoas no Brasil entre 2018 e 2019. Outro surto foi identificado este ano, concomitante à pandemia do novo coronavírus. A reincidência da infecção pode ser explicada em parte pela propagação de notícias falsas a respeito das vacinas. Em consequência, nenhuma meta de vacinação do Ministério da Saúde para o primeiro ano de vida dos bebês foi atingida no ano passado.

 

“O coronavírus está recebendo mais atenção e cuidados, mas outras epidemias estão acontecendo. A dengue continua grave e severa”, relata Lígia da Costa. Mosquitos, como o Aedes aegypti, por transmitirem doenças, são os animais que mais matam no mundo: são cerca de um milhão de óbitos por ano, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Eles se proliferam em abundância a cada verão. A principal medida de combate a esses insetos é não deixar água parada.

 

O professor Georgios Pappas Júnior comenta sobre o papel fundamental das políticas públicas de saúde nas situações em que agentes infecciosos ameaçam a sociedade. “O Estado tem papel não somente na prevenção, mas na contenção e condução desses cenários. É preciso estabelecer o monitoramento dos focos incipientes de uma doença, alertar a população e agir na contenção”, esclarece.

 

O pesquisador afirma ainda que, durante a progressão da doença, as condições hospitalares para tratamento devem ser garantidas. E enumera os passos seguintes e as ações permanentes por parte do Estado. “Posteriormente, ações de prevenção futura, como campanhas de vacinação, saneamento básico e garantir a infraestrutura em unidades de saúde. Por fim, é muito importante ressaltar o imperativo de fomento a pesquisas científicas em diversas áreas para caracterizar os aspectos biológicos dos patógenos e da enfermidade, desenvolvimento de drogas e testes diagnósticos, modelagem estatística e desenvolvimento de softwares”.