DOSSIÊ

Especialistas analisam a atual crise econômica e apontam caminhos pós-pandemia: reformas na estrutura fiscal e políticas sociais podem benecificar desenvolvimento econômico sustentável de longo prazo no Brasil

 

 

 

 

Texto Secretaria de Comunicação

 

Desde sua notificação na China, o Sars-Cov-2, vírus causador da covid-19, conseguiu alcançar todos os continentes em apenas dois meses. Além de gerar importante crise sanitária global, incluindo perda de vidas, impactou a economia da maioria dos países. Enquanto alguns conseguiram construir gestão eficiente para minimizar riscos, outros não tiveram o mesmo sucesso. Entre investimentos massivos dos Estados e paralisação das atividades da indústria, do comércio e dos serviços, vários países viram seus produtos internos brutos (PIB) despencarem, enquanto as dívidas aumentavam.

 

Se, em 2008, a crise financeira afetou diversos países, sobretudo os consumidores de commodities, desta vez, ela atingiu as estruturas econômicas nos quatro cantos do mundo. Já é possível calcular perdas históricas até em países que lideram o crescimento econômico há anos, como Estados Unidos (EUA), cujo PIB do segundo trimestre caiu 9,1% em relação ao trimestre anterior. Mesmo a China, a próxima candidata a se tornar a principal economia do mundo, sofreu desaceleração. 

 

O Brasil não escapou e o PIB encolheu 9,7% no segundo trimestre de 2020, na comparação com o primeiro trimestre. Uma queda recorde. “Com a pandemia, nós teremos uma situação de queda do PIB e não há elementos que apontem no sentido de uma retomada rápida da economia. Neste momento, não vejo iniciativas que permitam isso”, explica o professor da Universidade de Brasília (UnB) Evilásio da Silva Salvador, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Política Social. 

 

Na verdade, o país já enfrentava situação econômica ruim antes da pandemia, entre acelerada desindustrialização, queda de investimentos, alta taxa de desemprego, precarização da força de trabalho e amarras orçamentárias. “Para financiar uma retomada, é preciso mexer na estrutura fiscal, o que envolveria, de fato, alterar a relação com o orçamento público”, completa o docente, que é também especialista em finanças públicas. 

 

O professor e diretor da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense, Ruy Afonso de Santacruz Lima, também é cauteloso ao analisar o futuro da economia brasileira. Segundo ele, crescer agora significa apenas recobrar um impulso para frente. O caminho para essa retomada, de acordo com ele, é investir em políticas sociais capazes de equilibrar e fomentar o consumo consciente.

 

Para ele, o Brasil atual é injusto e desigual demais para ter um desempenho econômico razoável. Seria preciso investir em política social para obter um desenvolvimento econômico sustentável de longo prazo. “As pessoas não percebem que, se a população não tem dinheiro, não há demanda; sem demanda, não há emprego, e sem emprego, não há desenvolvimento econômico”, conclui Ruy Afonso de Santacruz Lima. 

 

Retomada

De acordo com o professor da UnB Evilásio da Silva Salvador, o primeiro passo para a recuperação é abandonar a ideia de que o Estado deve se comportar somente como um espécie de chefe de família, pois, ao contrário, dispõe de uma série de recursos institucionais complexos. “O governo tem vários instrumentos para lidar de forma mais eficaz num contexto de crise, como emissão de moedas, tomada de endividamento, cobrança de royalties, recolhimento de lucros e dividendos de estatais e reestruturação tributária”, enumera o professor.

 

No Brasil, o sistema tributário é regressivo, ou seja, onera ainda mais os mais pobres e os assalariados. Para o especialista em finanças públicas, “se pensarmos na estrutura tributária, veremos 

que 75% são tributos sobre consumo que atingem mais, proporcionalmente, o mais pobre. A outra parte representa tributação sobre a renda do trabalhador”.

 

Segundo o docente, o primeiro passo seria alterar a estrutura engessada desse sistema, abrindo espaço para uma arrecadação mais justa. Uma das propostas mais levantadas pelos defensores do equilíbrio tributário é a taxação de heranças e grandes fortunas, o que aparenta ser mais justo em um país que possui historicamente uma das piores distribuição de renda do planeta. A título de exemplo está o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), que onera carros populares, mas isenta jatinhos e veículos de luxo, como iates.

 

Histórico

Na opinião do professor Evilásio da Silva Salvador, antes de decidir quais caminhos tomar, é fundamental compreender as amarras constitucionais que de fato delimitam as ações. O Brasil possui um desenho de sistema fiscal e manejo do fundo público (recursos que o governo mobiliza para realizar intervenções) que impactam diretamente nas políticas econômicas e sociais. Um desses aspectos diz respeito à política fiscal, que envolve as políticas de arrecadação e de

destinação dos gastos do governo.

 

Em 1993, ainda na formação do Plano Real, foram estabelecidos parâmetros de controle fiscal do Estado, como meta de inflação, superávit primário, controle de gastos zero, em especial na área social, entre outros dispositivos. Porém, na receita, houve um processo de desoneração tributária do topo da pirâmide social brasileira, incluindo isenção de lucros e dividendos do pagamento de imposto de renda para a parcela mais rica da população e a não tributação do envio de lucros e dividendos remetidos ao exterior, por exemplo.

 

Esse modelo de ajuste fiscal permanente ganha uma outra qualidade a partir da crise do capitalismo em 2008 e, posteriormente, tem seu ápice em 2016 com a Emenda Constitucional 95, que alterou a Constituição para instituir o Novo Regime Fiscal. “No Brasil, o auge vai ser 2016, ainda no governo Temer, quando é aprovada a chamada Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, que viabiliza o congelamento das despesas primárias e correntes, limita a correção do índice inflacionário (IPCA), visando economizar recursos para o pagamento de juros, encargos e amortização da dívida”, explica. 

 

Entre 2016 e 2019, os dados apontam relativo sucesso atrelado à medida: há um pequeno crescimento na economia brasileira de 2,6%. De acordo com o professor, os custos, no entanto, foram e estão sendo altos: perdas significativas em recursos voltados para os direitos da cidadania e congelamento de gastos com saúde e educação. 

 

Neste contexto, há ainda um outro conjunto de medidas que o atual governo federal encaminhou, incluindo os Projetos de Emenda Constitucional (PECs) 186, 187 e 188. Eles mexem em fundos públicos e propõem medidas que podem violar direitos constitucionais, como o artigo 6° da Constituição Federal, que garante que “são direitos sociais, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”.

 

Cenário global

Se o Brasil carece de reformas robustas para uma recuperação econômica enérgica e contínua, alguns países se saíram melhor que nós na gestão do impacto financeiro gerado pela pandemia. 

 

Para o professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília Roberto Goulart Menezes, a reação de cada país no começo da pandemia variou muito, mas é possível separá-los em três grandes grupos: “Há os que, desde o início, adotaram medidas sanitárias conjugadas com a proteção da vida e apoio aos cidadãos através do reforço de programas sociais; os que minimizaram os efeitos da crise sanitária e foram recalcitrantes em adotar políticas sociais ou emergenciais de apoio aos cidadãos; e os que simplesmente não tinham condições de fazer frente aos custos econômicos diante do aumento da pobreza, do desemprego e do aprofundamento da crise econômica”, afirma o professor, também especialista em ciência política e economia política internacional.

 

O balanço, entretanto, tende a ser negativo para a maioria dos países, trazendo enormes desafios. “Antes da covid-19, a economia mundial não estava crescendo, claro. No entanto, com a doença, ela sofreu uma queda e espalhou um rastro de destruição. No lugar do crescimento lento veio a quase estagnação”, explica o professor.

 

Os Estados Unidos, por exemplo, apesar de ter ao seu alcance recursos para conter a crise, não foram capazes de gerenciá-la de forma eficaz por meio da cooperação com outras nações. “Os Estados Unidos de [Donald] Trump simplesmente viraram as costas para o mundo”, considera Roberto Goulart Menezes. 

 

Na atual conjuntura, assim como na já referida crise de 2008, o papel dos Estados foi fundamental. Segundo o professor da UnB, o impacto gerado pela suspensão de grande parte das atividades econômicas, tanto dentro como entre os países, levou à quase paralisação das atividades econômicas, o que promoveu esse impacto recessivo sincronizado. Vale ressaltar que, passados cerca de oito meses da crise, apenas a China conseguiu retomar parcialmente seu dinamismo econômico e apresentou crescimento significativo do PIB no terceiro trimestre de 2020.

 

O fato é que num contexto pré-pandêmico, a economia mundial já não vinha apresentando bons sinais. Em 2008, a crise desencadeada nos Estados Unidos gerou um colapso capaz de afetar a maior parte dos países. De acordo com Roberto Goulart Menezes, trabalhos publicados já apontavam que as inovações financeiras introduzidas nos anos 1980 – oriundas das políticas neoliberais, conjugadas com a desregulamentação de diversos mercados e com apoio do governo norte-americano – não iriam acabar bem. “Em 2008, veio a crise e então parecia que o neoliberalismo tinha sido posto em xeque”, resume. Soma-se a isso o surgimento de um vírus devastador, que não poupou quase nenhuma nação, e que serviu como um gatilho para agravar a crise econômica. São raros os casos de países que têm conseguido lidar bem com a situação. 

 

Do ponto de vista global, é possível esperar muitas discrepâncias no que se refere à recuperação econômica. Enquanto países desenvolvidos, com indústria forte e relações comerciais consolidadas, devem sofrer desaceleração econômica por menos tempo, países reconhecidamente frágeis vão precisar de mais reformas, gestão governamental eficiente, mais cooperação internacional e apoio externo para se reestruturarem.