Texto Nicole Mattiello
Enquanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) caracterizava a covid-19 como pandemia, o Brasil vivia simultaneamente outra tragédia: uma das mais graves degradações ambientais de sua história.
Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que 2020 já pode ser considerado o pior ano em número de focos de queimadas no Pantanal. De acordo com o Prevfogo, centro responsável pela política de prevenção e combate aos incêndios florestais no território nacional, mais de 2,8 milhões de hectares foram atingidos pelo fogo na região – para se ter uma ideia, um hectare equivale a aproximadamente um campo de futebol. As queimadas na Amazônia não ficam atrás. São as maiores dos últimos nove anos.
Ilustração Igor Outeiral
Apesar de ter sido um dos primeiros países do mundo a fortalecer a legislação ambiental, a implementação das leis é falha, de acordo com o Relatório sobre o Estado do Direito Ambiental, divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em janeiro de 2019.
O fato é que agressões aos biomas – não só no Brasil, mas no mundo todo – e a atual pandemia estão intimamente relacionadas, afirmam pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB).
A alteração dos biossistemas contribui para que o ser humano tenha um tipo de contato com a fauna que não deveria ocorrer. É muito frequente, por exemplo, que animais se sintam ameaçados com a aproximação indevida. De acordo com o professor do Departamento de Geografia da UnB Rafael Franca, isso debilita seus sistemas imunológicos, tornando-os mais vulneráveis a patógenos, que podem se fortalecer, a exemplo do novo coronavírus (Sars-Cov-2). Isso aumenta o risco do surgimento de doenças de origem zoonótica, como é o caso da covid-19.
A mesma situação ocorre no Brasil, de acordo com Saulo Pereira, professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB, pesquisador da relação entre desenvolvimento regional e mudanças climáticas. “Temos observado um aumento da incidência de doenças de origem zoonótica, como febre amarela, chikungunya, zika e malária. Isso tudo também é consequência da degradação ambiental, da enorme quantidade de queimadas e do aquecimento global”, afirma o docente, atentando para o surgimento de uma série de doenças em decorrência da perda da biodiversidade no Brasil.
“É uma causa ambiental. A degradação e a perda de habitats naturais agem junto ao clima, causando desequilíbrio dos ecossistemas”, resume.
Caminho possível
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, nos últimos 50 anos, o território brasileiro passou por uma explosão demográfica. Houve aumento de cerca de 130 milhões de pessoas. De 2000 a 2020, a população aumentou em cerca de 36 milhões. Esse crescimento também é motivo de preocupação dos pesquisadores. Ludmilla Aguiar, professora do Departamento de Zoologia da UnB, defende que um dos maiores problemas que o país enfrenta atualmente está relacionado à urbanização.
“O Brasil é um país agricultor. Com esse crescimento urbano observado aqui, e na América Latina em geral, estamos criando grandes cidades, mas sem planejamento. Isso faz com que penetremos em áreas a que antes não tínhamos acesso e as deterioremos. O ecossistema que antes estava em perfeito equilíbrio é alterado. Essa perda de equilíbrio pode ter como consequência o surgimento de doenças”, explica Ludmilla, que aponta a falta de acesso à educação como um complicador do desenvolvimento desalinhado pelo qual o país passa.
Rafael Franca partilha dessa opinião. Para ele, o desenvolvimento urbano tem ocorrido de maneira desordenada, o que pode representar uma ameaça para os biossistemas. “A humanidade precisa de recursos. Se chegamos aonde chegamos, é porque usamos esses recursos”, afirma o docente.
Como alternativa, Franca aponta a necessidade de adaptar a economia para um modelo verde, mais sustentável. Uma cidade construída considerando a natureza, os animais, o curso das águas e a manutenção das matas ciliares (florestas ou outros tipos de cobertura vegetal nativa, que ficam às margens de rios, lagos, represas) é um exemplo de economia verde aplicada à urbanização. “Não é só plantar árvore na calçada, nem destruir a cidade e ir morar no mato. É construir cidades sustentáveis para todos – humanos, fauna e flora – morarem de forma mais sustentável”, resume.
A longo prazo
Em 2015, países signatários do Acordo de Paris – tratado internacional sobre mudança climática no âmbito da ONU – , entre eles o Brasil, firmaram compromisso para reduzir emissões de Gases do Efeito Estufa (GEE). O tratado foi feito para tentar manter o aumento da temperatura média global em bem menos de 2ºC acima dos níveis pré-industriais. Nos últimos anos, porém, o país aumentou em 50% a produção de GEEs em relação ao mundo. “Geramos energia por queima de combustíveis fósseis. Não conseguimos nos libertar disso”, destaca Rafael Franca.
Durante os primeiros meses de pandemia, quando a adesão ao isolamento social era grande, foi noticiada a melhora da qualidade do ar em várias cidades no Brasil e no mundo. Na terra da garoa, até o céu, costumeiramente cinza, ficou azul. A Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) registrou dispersão de gases poluentes, o que melhorou a qualidade do ar. O Himalaia voltou a ficar visível na Índia devido à redução de poluição. A vista não podia ser contemplada desde 1940. Sem os milhares de turistas transitando, a água nos canais de Veneza ficou mais clara e nítida.
São notícias animadoras, porém transitórias e pontuais. Para promover mudanças significativas na melhoria do clima é necessário esforço contínuo e a longo prazo, garante Franca, que é especialista em climatologia. “A atmosfera é um sistema altamente complexo, envolve muitas variáveis. É um sistema muito lento. O planeta é mais água do que terra, e o oceano é muito devagar para responder a essas mudanças climáticas. É muito difícil notar um resultado climático de imediato e é impossível promover mudanças em um curto espaço de tempo”, explica.
Ele assegura que as implicações da adesão ao isolamento social não tiveram impacto global significativo no clima. “Estamos vivendo hoje a consequência de mais de um século de industrialização, de emissão de gases toda hora, todo dia, sem parar. Mesmo com a pandemia e o isolamento, a Europa teve um dos verões mais quentes da história. Efeito da industrialização”, afirma. Franca conclui que mesmo se a indústria parasse hoje de emitir os GEEs, a Terra continuaria aquecendo, e os efeitos só seriam sentidos daqui a 20 anos.
Desigualdade extrema
Em pesquisa que realiza sobre desenvolvimento regional e mudanças climáticas no Brasil, o professor Saulo Pereira percebeu que o desenvolvimento sem planejamento no país tem relação intrínseca com a desigualdade. “Essa explosão demográfica da América Latina produz impactos na natureza muito expressivos. Eu vejo o crescimento desordenado no Brasil como uma consequência da desigualdade, da falta de acesso a uma renda mínima e a uma condição mínima de sobrevivência”, expressa. O último relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), divulgado em 2019, aponta o Brasil como o sétimo país mais desigual do mundo.
Uma das principais consequências da Rio+20, conferência que ocorreu no Rio de Janeiro, em 2012, para discutir a renovação do compromisso político com o desenvolvimento sustentável, foi a definição dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável como um norte a ser seguido pelos países-membros. Erradicar a extrema pobreza e a fome, universalizar a educação primária e garantir a sustentabilidade ambiental estão entre as metas apresentadas na conferência. O discurso, entretanto, está longe da prática, adverte o pesquisador.
Um dos resultados da pesquisa do professor Saulo é sobre a importância de tratar temas ambientais juntamente com questões sociais. “As pessoas e a sociedade são quem promovem os impactos ambientais. Trazer a noção de pertencimento e responsabilidade é importante para que a sociedade tome ações unidas no combate às desigualdades e, consequentemente, no combate à degradação ambiental”, conclui.
Falta de saneamento
Combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças também foi um objetivo definido na Rio+20. O combate a essas patologias, no entanto, passa por outra condição acentuada pela desigualdade: a falta de saneamento básico. O Instituto Trata Brasil levantou que 48% da população brasileira ainda não possui coleta e tratamento de esgoto. É como se 5.650 piscinas olímpicas de esgotos fossem despejadas na natureza diariamente. Com praticamente metade dos brasileiros sem saneamento, essas doenças encontram um ambiente favorável para disseminação.
O professor de epidemiologia da Faculdade da Ceilândia da UnB Walter Ramalho desenvolve um projeto de pesquisa de monitoramento e vigilância para doenças. Ele explica que a recorrência de doenças, como zika, malária, febre amarela, chikungunya e dengue no Brasil é muito influenciada pela falta de saneamento básico. “O aedes aegypti ‘colonizou’ as nossas cidades, ele é um vetor alado dessas epidemias. O mosquito se deu muito bem aqui: temperatura e umidade favoráveis, moradias precárias e esgoto a céu aberto. Isso é tudo o que ele precisa para ter a reprodução aumentada”, diz, consternado, após lembrar que o Distrito Federal (DF) está tendo, em 2020, a maior epidemia de dengue da história.
A febre amarela tem uma relação muito forte com o desequilíbrio ecológico, aponta Ramalho. “Na academia, especulamos que uma das motivações do grande surto de febre amarela que tivemos nos últimos anos foi um desequilíbrio no ecossistema de Minas Gerais, particularmente na região do Rio Doce, a partir do momento do rompimento da barragem em Mariana. Houve uma coincidência na localidade, no espaço e no tempo. A partir do rompimento, começamos a visualizar um espalhamento da doença com uma mortalidade de primatas não humanos muito elevada que percorreu uma grande área do Brasil”, conta.
Em julho deste ano, o governo federal aprovou o novo Marco do Saneamento Básico. O projeto prevê a universalização do saneamento básico no Brasil até 2033, com a meta de atingir 99% de fornecimento de água potável e 90% para coleta e tratamento de esgoto. Cético em relação ao projeto, Walter diz que vê a necessidade de um esforço maior do Estado para conseguir atingir esses objetivos. “Precisamos de investimentos por, pelo menos, os próximos 20 anos para sair dessa tragédia de saneamento que temos hoje”, alega.
Fortalecer o SUS
Quando questionado se o Brasil pode vir a ser o berço de uma nova pandemia análoga à da covid-19, Ramalho é enfático: “temos todas as condições favoráveis para isso”. O professor de epidemiologia explica que a grande circulação de vírus na nossa fauna em conjunto com o forte desequilíbrio ecossistêmico na nossa zona silvestre pode ter como consequência o spillover. O termo em inglês pode ser traduzido como transbordamento e é usado na ecologia para explicar que um micro-organismo (vírus ou micróbio) conseguiu se adaptar e migrar de uma espécie de hospedeiro para outra. Embasado por outra pesquisa que está desenvolvendo sobre soluções aplicáveis para a Saúde Pública com relação a essas epidemias, o professor ressalta que, caso venha a ocorrer, o país precisa estar preparado. Isto é, ter o Sistema Único de Saúde (SUS) fortalecido. “Esperamos que isso não ocorra. Mas, caso aconteça, que estejamos preparados. Precisamos reforçar os nossos sistemas de saúde. O SUS precisa ser visto com melhores olhos pela sociedade, porque é um sistema extremamente interessante. Ele ainda é exitoso; temos várias experiências que comprovam isso. É um sistema muito barato. Com um pouco mais de investimento, ele pode tornar-se mais universal e de melhor qualidade”.
O SUS completou 30 anos em setembro de 2020. Entre as experiências exitosas que Ramalho cita, está o Programa Nacional de Imunizações, iniciativa entre as maiores do mundo, que oferece 45 vacinas diferentes para toda a população brasileira. Mesmo assim, dados levantados pelo jornal Folha de S. Paulo mostram que, em 2019, pela primeira vez em duas décadas, o Brasil não atingiu a meta de imunização de nenhuma das principais vacinas indicadas para crianças de até um ano.
Ramalho conclui que o investimento no SUS também deve ocorrer para mitigar a desinformação que a sociedade brasileira sofre atualmente. “A quantidade de notícias falsas que recebemos diariamente é surreal. Não é à toa que o programa de imunizações foi tão mal em 2019 e deve ir ainda pior em 2020. A comunidade antivacina ataca sem medo, mas o Ministério da Saúde e o governo federal precisam atacar de volta, com informações de qualidade que desmintam as notícias falsas”, finaliza.