Rio de Janeiro, Brasil. Foto: Naknaknak/Pixbay
Texto: Robson Rodrigues
Combater a extrema desigualdade no mundo é medida necessária e cada vez mais defendida por economistas e especialistas de diferentes perspectivas ideológicas. É fácil compreender a defesa dos estudiosos ao se deparar com dados da disparidade: enquanto o 1% mais rico do mundo acumula mais que o dobro da riqueza de 92% da população, quase metade das pessoas no planeta sobrevive com menos de cinco dólares e meio por dia (US$ 5,50). Os dados são da Oxfam, organização internacional de combate à pobreza e à injustiça social, publicados em 2020.
Para enfrentar a concentração de renda, a principal estratégia adotada com sucesso em países desenvolvidos é a efetivação de um sistema tributário progressivo, modelo que escalona a arrecadação de impostos, taxando mais os contribuintes com maior renda e patrimônio. A medida permite dinamizar os recursos concentrados no topo da pirâmide econômica, aumentando consumo, emprego, renda e lucro nas demais camadas sociais.
Tal progressividade está prevista na Constituição brasileira, mas o que se vê hoje no país é o contrário: uma tributação regressiva que poupa os ricos e sobrecarrega os mais pobres. Mesmo ocupando o segundo lugar entre os países com maior concentração de renda, o Brasil não implementa as reformas necessárias para aplacar o quadro. Uma das alegações contra as mudanças é que o aumento de tributos sobre grupos privilegiados pode afastar grandes investidores para países com menores encargos, ocasionado a chamada fuga de capital. Mas raros são os países desenvolvidos que cobram tão pouco imposto dos multimilionários quanto o Brasil. Apenas paraísos fiscais proporcionam regalias semelhantes. Economistas ouvidos pela Darcy referem-se ao sistema tributário brasileiro como "Robin Hood invertido" e "refúgio para os ricos".
Enfrentamento necessário
Por que é preciso reduzir desigualdades? Numa perspectiva humanista, reduzir desigualdades é a medida necessária para tirar milhões de indivíduos da extrema pobreza, oferecendo a eles condições dignas de subsistência, com menos injustiças e mais equilíbrio de oportunidades e de condições para disputa no mercado de trabalho.
Pelo lado do oportunismo financeiro, combater disparidade de renda também interessa, já que favorece o crescimento econômico dos países. Estudo publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2017, concluiu que quanto maior a desigualdade social de determinada sociedade menor é seu crescimento econômico.
Outra perspectiva é que investir em justiça social também pode gerar vantagens competitivas. Segundo pesquisa da McKinsey & Compan, equipes executivas com maior diversidade étnica têm 33% mais propensão ao lucro do que outras empresas. Além disso, a violência decorrente de uma sociedade muito desigual também gera custos, por exemplo, com gastos em segurança pública e privada ou com reaquisição de bens furtados.
Para além da má distribuição de renda, a cientista política e professora da UnB Danusa Marques destaca que as desigualdades se apresentam de várias formas, como material (que não se resume a renda), de gênero, raça, sexualidade e classe. "Essas desigualdades são injustiças em que determinadas posições são menos valorizadas", aponta.
Mas num mundo em que as pessoas são tão diferentes umas das outras, é razoável questionar se é possível e desejável eliminar desigualdades. A pesquisadora argumenta que igualdade social não significa que todos são iguais: "Significa que todo mundo vale a mesma coisa. Esse é o sentido da democracia. E o contexto de desigualdade hierarquiza as pessoas, colocando algumas numa situação de privilégio e outras na subalternidade. As pessoas passam a ser vistas como se tivessem valor diferente, gente que vale mais ou menos".
Para Danusa Marques, os sistemas de cotas servem como ajustes úteis em situações de profunda injustiça social. Entretanto, ela pondera que as cotas não são soluções "intensas" para combater as disparidades, que poderiam ser reduzidas, entre outras medidas, com a democratização do ensino. "Se houvesse ricos em escolas públicas, essas pessoas estariam preocupadas com a qualidade do ensino público. Falta a noção do que é o público, que é o coletivo e a sociedade, e não o Estado", opina.
Regressividade
Estudo publicado em 2020 pela Receita Federal mostra que a tributação brasileira é menor do que a média praticada pelos países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 2017, os encargos no país equivaleram a 32,3% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto a média dos países da OCDE foi de 34,2%. O problema é que o Brasil enfatiza principalmente os impostos indiretos (sobre bens e serviços), que representam mais de 44,79% da carga tributária bruta total, em detrimento a impostos diretos (sobre renda e propriedade). Isso resulta num sistema regressivo em que famílias de menor renda financiam proporcionalmente uma fatia maior do Estado.
A pesquisa revela que, diferentemente do Brasil, nos países mais ricos a tributação progressiva incide principalmente sobre renda e patrimônio, e não sobre o consumo. Em 2017, enquanto a média da OCDE para encargos sobre renda, lucro e ganhos de capital foi de 11,4% do PIB, a taxa brasileira ficou em apenas 7%. Por outro lado, a média da tributação sobre bens e serviços na OCDE foi de 11,1% do PIB; já no Brasil o percentual foi de 14,3%.
Os que mais arcam, proporcionalmente, com a arrecadação via consumo são os 10% mais pobres, com 87% de sua renda destinados a esse tipo de gasto – deve-se considerar que despesas como alimentação, moradia e transporte comprometem quase a totalidade de seus ganhos. Do outro lado, o 1% mais rico destina apenas 24% da renda para consumo, como aponta Pesquisa de Orçamentos Familiares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (POF/IBGE) de 2017-2018.
"O Brasil poderia ser descrito como um ‘refúgio’ para os ricos. As maiores alíquotas de impostos são muito baixas do ponto de vista internacional e histórico; e quase nulas para as maiores rendas. Isso reverte a progressividade do imposto, uma vez que os grupos de menor renda acabam pagando uma parcela maior de sua receita em comparação com os grupos de maior renda", afirma o economista irlandês Marc Morgan Milá, integrante do World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais, em tradução livre) da Paris School of Economics (PSE) e pupilo do célebre economista Thomas Piketty.
Uma das principais queixas de Morgan Milá à tributação brasileira é voltada ao Imposto de Renda (IR). Para ele, embora o tributo nacional isente a parcela mais pobre (quem recebe, atualmente, menos de R$ 1.904 mensais), o princípio da progressividade é quebrado ao taxar os mais ricos de forma insuficiente. A maior alíquota marginal do IR no Brasil é de 27,5% para rendas acima de R$ 55 mil por ano, aproximadamente menos de um terço do rendimento médio dos 10% mais ricos.
O teto da alíquota brasileira está abaixo da média dos países da OCDE, que gira em torno de 41%. Mesmo baixa em comparação aos países desenvolvidos, a cota dificilmente chega a ser paga pelos mais ricos, já que o sistema tributário promove uma série de isenções, a exemplo de gastos com saúde e educação privada. Além de o Estado fornecer educação e saúde pública, ele ainda subsidia serviços particulares usufruídos pela parcela da população com mais recursos. Também isenta impostos sobre lucros e dividendos e permite dedução dos juros sobre capital próprio, pagos a sócios e acionistas.
Morgan Milá destaca que a tributação brasileira de riquezas e de heranças é insuficiente, o que contribui para a perpetuação de privilégios e iniquidades. A transmissão de fortunas é taxada pela alíquota marginal máxima que fica em torno de 3% e 4% no Brasil, chegando a 8% em alguns estados. "Pouco, em comparação aos 25% no Chile, cerca de 35-40% nos países da Europa Ocidental, 40% nos Estados Unidos e 55% no Japão", aponta o britânico.
Além dos problemas com a regressividade do sistema tributário, o Brasil deixa de arrecadar mais de R$ 417 bilhões por ano devido à sonegação de impostos das empresas, segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT). O órgão estima o faturamento não declarado pelas empresas em cerca de R$ 2,33 trilhões por ano, em função de uma fiscalização ainda fraca, apesar de avanços.
"Redistribuição às avessas"
Apesar do estigma relacionado aos impostos, quando bem aplicados, eles podem ajudar a reverter quadros de miséria e disparidade de renda sem ferir a parcela da população mais vulnerável. Não é o que ocorre no Brasil. "Mais do que um Estado que não redistribui, o Brasil faz redistribuição às avessas. Um Robin Hood invertido: tira dos pobres e dá para os ricos", critica o economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social), ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
"O Brasil, apesar dessa desigualdade amazônica, tem um Estado grande, comparado a outros países emergentes, em termos de arrecadação tributária, por exemplo, mas sem os benefícios de um Estado grande em termos de desigualdade", analisa o ex-ministro. Para ele, o Brasil é uma "maquete do mundo", por ter a disparidade tão acentuada, como no resto do planeta.
Neri acredita que o país além de tributar mal a população, não gasta bem o dinheiro arrecadado, o que gera problemas em termos de eficiência e de equidade. "O país fica mal nas duas faces da moeda: na face humana e na face do crescimento econômico". Para ele, reformas estruturais no Estado, como as recentes previdenciária, trabalhista e administrativa (ainda em trâmite no Congresso), se bem feitas, podem ser positivas dos pontos de vista macroeconômico e social, pois seriam mecanismos de redução de desigualdade.
"Eu diria que a Reforma Trabalhista gera precarização do trabalho, diminui os direitos trabalhistas, mas pode promover aumento de postos de trabalho", ressalva Marcelo Neri, que também defende aprimoramento no imposto sobre herança e no imposto de renda.
Classe média e o trabalho
Marcelo Neri escreveu em 2011 o livro A nova classe média, termo que ele popularizou para designar a camada de brasileiros que emergiu financeiramente na primeira década deste século. De acordo com o pesquisador, o trabalho foi o grande impulsionador do crescimento econômico e principal responsável pela queda da desigualdade.
"O que houve no Brasil de 2001 em diante foi uma redução de desigualdade que persistiu até 2014. A desigualdade caiu todos os anos, algo inédito nas séries históricas brasileiras. E a partir do fim de 2003, passou-se a ter crescimento, não só do PIB, mas também da renda das pessoas. Esse processo de crescimento teve mais força na base da distribuição. O PIB cresceu 28%; e a renda mediana cresceu 95%, com destaque entre os 10% mais pobres, cujo crescimento foi de 150%", analisa o ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
Neri observa que o ampliamento da classe média possibilita maior locomoção entre as classes. "Uma sociedade cuja distribuição se parece com o Pão de Açúcar, com um grupo aqui e outro grupo ali, é uma sociedade polarizada com um vácuo entre as classes. A classe média torna a sociedade mais contínua. O meio da distribuição entre pobres e ricos precisa estar preenchido para que exista uma ponte entre esses dois grupos", ilustra.
Desigualdades socioespaciais
Levantamento de 2020 do Ipea revelou que 1,6 milhão de brasileiros vive longe de centros de saúde equipados. O fato é, por si só, grave. Em meio à pandemia de covid-19, torna-se ainda mais preocupante. Coordenador da pesquisa, Rafael Pereira avalia que a distribuição espacial da população é uma face das desigualdades negligenciada no debate público.
"Se por um lado os grupos mais vulneráveis são levados a morar em bairros pobres porque são mais baratos, por outro, o fato de morarem nesses bairros reforça a condição de pobreza e desigualdade que acabam vivendo, já que nestes locais há menor acesso a serviços de transporte, saúde, educação, oportunidade de emprego, além de pior infraestrutura urbana", analisa Rafael Pereira, que é doutor em geografia de transportes pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, e sociólogo pela UnB.
O pesquisador alerta que falta planejamento urbano integrado. "Isso significa, em termos práticos, fazer com que a secretarias de educação, de saúde, de desenvolvimento urbano, e de transporte sentem à mesma mesa para discutir os planos", resume. Para ele é possível combater as desigualdades socioespaciais expandindo a infraestrutura nos bairros pobres, que se beneficiariam com mais serviços essenciais e oferta trabalho. "É preciso levar os serviços públicos para essas regiões, construir escolas, hospitais, pensar para além de uma política de transporte para os grandes centros urbanos."
Transferência direta de renda
Aumentar a tributação sobre o 1% mais rico pode financiar a transferência de R$ 125 por mês para os 30% mais pobres. O repasse direto teria um impacto positivo de 2,4% no PIB, contribuindo para a recuperação da atividade econômica e reduzindo a desigualdade de renda. Essa foi a conclusão de recente estudo publicado pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made-USP).
Desde 2004, o Brasil conta com um importante programa de transferência de renda, o Bolsa Família. Dados de 2019 do Ipea mostram que o Bolsa Família eliminou 15% da pobreza e 25% da extrema pobreza entre os beneficiados e reduziu em 10% a desigualdade de renda no país. Além disso, o programa exige que os filhos das famílias beneficiadas frequentem a escola, o que ajudou a diminuir a desigualdade de educação no Brasil.
Durante a pandemia de covid-19 no ano passado, outro programa de transferência direta de renda, o auxílio emergencial, fez com que a desigualdade e a pobreza caíssem para patamar histórico em apenas seis meses. O efeito de curto prazo não eliminou os problemas estruturais, mas garantiu a sobrevivência de parte da população e aumentou a circulação do consumo na economia. Estudo deste ano do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) mostrou que o auxílio segurou uma iminente queda do PIB de 2020 em pelo menos 4%.
Na avaliação de Eduardo Suplicy (PT-SP), economista, ex-senador e atual vereador de São Paulo, medidas de combate à desigualdade precisam estar no centro do debate público. "Precisamos levar em consideração os instrumentos de política econômica e social que venham a elevar o grau de justiça na sociedade e que possam contribuir para os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil", comenta Suplicy, ao citar o Artigo 3 da Constituição que estabelece entre as metas prioritárias do país "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais".
Suplicy é autor da Renda Básica de Cidadania, lei sancionada em 2004 que prevê a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil há mais de cinco anos o direito de receber um auxílio financeiro anual, independentemente da condição socioeconômica. Ou seja, ricos e pobres receberiam compulsoriamente o mesmo valor.
A lei nunca saiu do papel por falta de norma que regulamente sua implementação. Entretanto, em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal determinou que o governo federal tem até 2022 para implementar um programa nacional de renda básica. O valor a ser pago mensalmente será definido pela União, e o benefício deve abranger apenas brasileiros em situação de extrema pobreza, ou seja, com renda inferior a R$ 178 mensal. A decisão atende a ação postulada pela Defensoria Pública da União.
"Proporcionar uma renda que resguarde as necessidades vitais de todas as pessoas, ricas ou pobres, é uma forma de eliminar estigmas, fraudes e burocracias", observa, apontando que o caráter universal eliminaria problemas frequentemente verificados no Bolsa Família, por exemplo. Para Suplicy, o benefício também ajudaria mulheres que atuam em atividades domésticas não remuneradas a terem um grau de autonomia financeira.
Suplicy aponta casos em que a adoção da renda básica universal foi bem-sucedida e contribuiu para expressiva diminuição de desigualdade: Alasca (Estados Unidos), Macau (China) e em Maricá (Rio de Janeiro). Para ele, o benefício pode ser uma das poucas soluções viáveis no futuro ao considerar o avanço exponencial de inteligências artificiais, que têm potencial de eliminar grande parte dos postos de trabalho nas próximas décadas – risco que preocupa diversos especialistas.
Perguntado se programas de repasse financeiro não serviriam como muletas que desestimulariam as pessoas de batalhar pelo próprio crescimento financeiro, Suplicy responde que a experiência mostra o contrário: assegurar o mínimo de dignidade às pessoas estimula o desejo de progressão pessoal.
Sem especificar medidas, o ex-ministro Marcelo Neri também afirma que programas de transferência de renda podem ajudar a melhorar a distribuição de renda brasileira. "Mas a economia política faz com que boas medidas de combate à pobreza e à desigualdade de curto, médio e longo prazo não sejam adotadas, talvez porque a desigualdade favoreça alguns grupos poderosos que se opõem à mudança", pondera o economista.