Texto: Vanessa Tavares

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Características de uma língua têm sido, historicamente, utilizadas para justificar sua dominação sobre outras, e consequentemente de seus falantes. Por exemplo, há quem aponte uma suposta objetividade da língua inglesa como a razão para sua predominância no mundo.

 

Analogia semelhante foi utilizada na colonização do Brasil. Em 1576, o cronista português Pero de Magalhães Gandavo escreveu que na língua dos nativos destas terras não existia “F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.”

 

Não há evidências, critérios ou métodos objetivos que mensurem e comprovem esse tipo de lógica. O que de fato há são decisões e interesses políticos.

 

Foi assim que a língua portuguesa se tornou a mais falada no Brasil e a oficial, status que a consagra obrigatória para mediar as relações entre cidadãos e Estado em atividades legislativas, executivas, judiciais e educacionais.

 

Há 274 línguas indígenas no território brasileiro e ao menos 190 estão em risco de extinção, conforme dados da Unesco e do último Censo (2010). O cenário pode ter sido agravado pela pandemia de covid-19 com a morte de idosos indígenas, guardiões de seus idiomas e, em alguns casos, seus últimos falantes. Isso porque o critério para considerar uma língua ameaçada de extinção relaciona-se à transmissão intergeracional, quanto menos a geração mais jovem utilizá-la de forma proficiente e cotidiana, mais ameaçada ela estará.

 

Língua, cultura e território são elementos profundamente imbricados, a interferência em qualquer deles é um risco à existência dessas comunidades. Devastação do meio ambiente, massacres e invasões de territórios nitidamente levam à dizimação de povos. Já o “apagamento” cultural é sorrateiro, porém, não menos danoso. Permite “desaparecer” com todo um povo sem eliminar um só indivíduo. Estão todos lá, mas não falam mais a sua língua, não praticam seus costumes, não habitam suas terras, não se identificam mais como unidade.

 

Um dado do Censo revela essa interdependência entre material e imaterial: 37,4% dos indígenas de cinco anos ou mais falavam uma língua indígena dentro do seu próprio domicílio, mas, quando considerados somente os que viviam em Terras Indígenas, o percentual aumenta para 57,3%. O pouco interesse dos jovens indígenas pela língua materna não está, portanto, relacionada a fatores linguísticos em si.

 

Se para acessar direitos e deveres é necessário o domínio da língua portuguesa e suas modalidades, não é de se admirar que indígenas priorizem o aprendizado e uso do português em vez da sua língua materna. E, que as línguas minoritárias sejam consideradas desnecessárias e desinteressantes pelo senso comum. Contudo, há pelo menos dois aspectos a ressaltar nesse tipo de conclusão.

 

Primeiro, esta concepção é pautada numa visão utilitarista de língua, que desconsidera a complexidade do seu papel como constituidora da sociedade e do indivíduo. As línguas estão no cerne do pensamento humano, cujo desenvolvimento, segundo o pensador russo Vygotsky, é determinado por seus instrumentos linguísticos e pela experiência sociocultural.

 

O outro aspecto é que, neste contexto, o idioma dominante deve, sim, ser ensinado, mas como um acréscimo, jamais em substituição ao materno. A criação deste dilema é por si uma violência, resultante das dificuldades impostas a essas comunidades pela ausência de políticas públicas e linguísticas que lhes assegurem acesso a direitos básicos, como educação bilíngue e preservação da sua cultura.

 

Instrumentos legais existem, por exemplo, o Inventário Nacional da Diversidade Linguística, política para reconhecimento da diversidade linguística como patrimônio cultural por meio ações de apoio e fomento. E, a própria Constituição que, nos artigos 201 e 231, determina que o “ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas” e reconhece “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. O que falta para que se revertam em ações?

 

A redução da diversidade linguística é uma perda irrecuperável para o patrimônio cultural da humanidade. Não tão óbvio, mas igualmente verdadeiro, é o fato que os povos indígenas e tradicionais compõem a biodiversidade dos ecossistemas que ocupam, e quando suas línguas são extintas, perde-se também todo o conhecimento sobre como manter e se relacionar com esses biomas de maneira sustentável.

 

SAIBA MAIS

O Google Earth criou um recurso (projeto Celebrando Línguas Indígenas) para divulgar línguas indígenas de todo o mundo por meio de áudios. O Brasil está representado pelos sanöma, etnia do povo yanomami. Ouça!