Texto: Daniel Lustosa
Fotos: Aria Baru
Ilustrações: João Paulo Parker
No tédio, no medo, na incerteza, na esperança. A arte pode surgir em momentos inesperados. Esse olhar levou Aria Baru, de 19 anos, a iniciar sua odisseia Sentimentos presenciais, um projeto que reúne fotografias, gravações e escritos que revelam impressões de estudantes, professores e funcionários de escolas públicas das cinco regiões do Brasil.
Com uma câmera na mochila e um caderno para anotações, a agora estudante do curso de Artes Visuais da UnB percorreu, de novembro de 2021 até outubro de 2022, cinco estados, nove municípios e 29 escolas para “capturar” o que as pessoas sentiam. Os registros transformaram-se, então, em retrato vivo da educação pública brasileira no contexto recente.
“Toda escola é diferente, e toda sala de aula também, mas alguns sentimentos se repetem.” A sensação de sono em sala de aula, por exemplo, nem sempre é fisiológica, decorrente de uma noite mal dormida. “Pode ser causada pelo tédio, pela vontade de ir embora e fazer com que aquele momento de aula passe o mais rápido possível”, detalha Aria.
E como captar esse sentimento? “Fizemos uma imagem em que todo mundo dorme. Até o professor está dormindo”, completa Aria. Na cena descrita pela graduanda (foto ao topo), a turma apoia cabeça sobre os braços, em cima das carteiras. Na lousa branca de moldura azul claro, a palavra SONO, escrita em caixa alta, traduz a inconveniência, o cansaço, o desligamento do agora.
Outros sentimentos, como a ansiedade e a sensação de sufocamento, também são abordados pelas fotografias. Nas visitas às escolas, a artista sentia “um pouco de dor e tristeza” pelos relatos dos alunos, familiares, professores e funcionários. No entanto, confessa que, paradoxalmente, isso a motivava a continuar.
“A gente vai levando na conversa e pergunta como está sendo para a pessoa. Alguns relatos foram muito fortes, a ponto de me emocionarem”, explica a artista ao reconhecer a diversidade de experiências. “É divertido também. Rola brincadeira, como colocar um skate e sair andando pela sala de aula. Isso tudo em meio ao retorno presencial e com a galera pensando ‘vamos curtir’.”
‘TOUR’ PELO BRASIL
Nas escolas, os ensaios são feitos de forma coletiva. Após perguntar para os alunos como eles se sentem, a artista lista os sentimentos e, junto com a turma, tenta traduzi-los em fotografias. A cena é performática, ou seja, pensada, ensaiada e dirigida para representar visualmente esse conjunto de sensações.
“A ideia é pegar essa sala de aula, que é totalmente tradicional, e subverter esse espaço. Transformá-lo em um lugar de liberdade, onde a gente pode fazer tudo, como subir e riscar a carteira, colocá-la de cabeça para baixo, em um outro lugar na sala, empilhá-la”, descreve Aria.
A idealizadora do projeto não tinha traçado um método para conseguir mobilizar a comunidade escolar e registrar as imagens, mas afirma que o processo de entrar em sala de aula e fotografar os estudantes é natural, e que eles não são forçados a nada.
“A primeira visita foi em Belém, e nós fomos construindo isso coletivamente. Teve um professor que me perguntou como eu consegui fazer com que o aluno participasse”, lembra.
Entre os docentes, o cansaço era sensação recorrente. “Uma professora sempre falava o quanto [a volta] estava sendo difícil para ela, pois além de ter que dar aula a manhã toda, de tarde ela tinha que fazer planejamento, correção, links, formulários, além das responsabilidades domésticas”, resume Aria.
CADERNO DE SENTIMENTOS
Sentimentos presenciais não é apenas um memorial fotográfico. O projeto inclui um caderno que esteve com Aria durante as suas peregrinações pelos quatro cantos do país. No papel, alunos, professores e funcionários anotavam desabafos, piadas, símbolos e até colavam adesivos.
“É um registro histórico sobre o Brasil de agora. Tem denúncia, frase de esperança, frase para alguém. Teve gente que borrifou álcool em gel. Teve professora pedindo para o diretor pagar o piso”, narra.
Aria pretende transformar as anotações em um livro que, juntamente com as fotografias e outros materiais, será colocado em exposição nas escolas e em espaços culturais.
O caderno eterniza sentimentos de felicidade, paz e amor, mas também de ansiedade e raiva. Em uma das páginas, uma estudante (que não se identificou) relata o que sentiu após ser vítima de assédio: "temos nojo disso, passar sozinha na rua para nós é um TERROR".
A variedade dos registros vai de manifestações de preguiça e de medo ao ávido desejo pela volta ao convívio escolar. Depois da vacina, sinto que a vida está começando a florescer novamente. Sinto alívio, sinto felicidade, sinto amor e sinto esperança, expressa uma passagem. Enquanto outra, protesta: "Vivi uma vida paralela por um ano e agora tenho medo de não me encaixar mais na real".
PASSADO E FUTURO
O projeto começou na pandemia, quando a ainda estudante do ensino médio passou a fazer capturas de tela de suas aulas remotas, ofertadas pela Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF). Aria também gravava relatos dos colegas sobre as dificuldades enfrentadas no período. A essa iniciativa, ela deu o nome de Escola_em_casa.
Assim como a maioria dos jovens que concluíram o ensino médio no auge da pandemia de covid-19, Aria não teve uma ‘despedida’ da escola. “Voltar à sala de aula depois de concluído o terceiro ano foi maravilhoso porque eu ganhei outro olhar. Estava todo mundo alegre, e foi aconchegante.”
Por outro lado, às vezes sente que nunca irá sair da escola. “Começamos a estudar aos quatro anos de idade e agora nós ainda estamos aqui, porque a Universidade é uma escola também, e eu quero continuar de alguma forma.”
Aria realizou os projetos sem apoio financeiro e nenhum edital. Fez amizades, visitou outros estados e, em Fortaleza, conheceu o pai biológico. “O projeto me levou a outros caminhos, a conhecer mais minha família, aprender a falar ‘tio’, ‘tia’, ‘primo’. Foi muito bom, tem sido muito bom.”
A fotógrafa e artista mantém contato com aqueles com quem teve mais proximidade durante a sua jornada pelo Brasil, principalmente com os professores da rede pública. Ela ressalta que o projeto é coletivo e que, por isso, as imagens não são somente dela. A ideia é devolver as fotografias às escolas para que sejam afixadas em murais, após curadoria conjunta de professores e alunos.
Para o futuro, a estudante de Artes Visuais pretende iniciar outros projetos que não envolvam a educação em si, mas que tenham a Universidade como plano de fundo. “Cansei um pouco desse tema”, brinca. “Penso em falar sobre os centros acadêmicos, sobre amores, sobre amores na UnB e sobre gênero.”