Situações cotidianas comprovam que discursos não são neutros, mas espaços de disputa, representatividade e poder

 

darcy divulgação A última flor 1

Ilustração: Isabel Landim/Secom UnB

 

Texto: Vanessa Tavares

 

Língua, cultura e identidade são profundamente imbricadas e interdependentes. Nenhuma delas é estanque ou estéril. As sociedades, as relações interpessoais e as individualidades são constituídas e organizadas por meio da língua, cujos significados e usos são construídos na prática social. Portanto, a língua é espaço de disputa, de representatividade, de construção, de poder.

 

Diante da legítima exigência de mulheres, pessoas negras e LGBTQIAP+ se verem representadas nesse sistema semiótico-social, a preservação da língua tem servido como desculpa por quem defende a manutenção do status quo e seus privilégios. Afinal, se a relação língua e sociedade é uma via de mão dupla, mudar a língua pode ser grande ameaça às condições de dominação. E, por mais que mudanças sociais ocorram, se elas não se refletem na língua e no discurso, é como se ficassem atenuadas, deslegitimadas.

 

A luta do movimento feminista ocorre há muitos anos, alçando conquistas e lidando com resistências. No entanto, pouca coisa foi alterada na língua se comparada a outros avanços da causa. O machismo continua presente na forma, no conteúdo, nos usos formais e informais, nas variedades cultas e nas populares, no discurso que legitima determinadas práticas.

 

Língua e discurso são sociais e históricos e, em todas as áreas da vida e da sociedade, o homem foi tomado como o protótipo e a referência de ser humano, cabendo à mulher a adaptação. Até o século 19, o corpo feminino era visto como uma versão menos desenvolvida do masculino. Hoje, muitos dos padrões de produtos, medicamentos, equipamentos e espaços físicos são pensados para o corpo masculino, com consequências negativas para saúde e vida da mulher.

 

E isso foi de tal modo naturalizado, que muitos não percebem essa predominância, nem sequer a existência da discriminação. Certa vez numa entrevista de TV, uma trabalhadora de aplicativo de entrega contou que ao solicitar que a empresa disponibilizasse mochilas adaptadas para corpos femininos, virou motivo de chacota entre colegas, todos homens, porque acreditavam que ela estava reivindicando uma mochila cor-de-rosa.

 

NO COTIDIANO  

  • Palavras como governanta, dona de casa e empregada doméstica até hoje são utilizadas apenas no feminino. Essas atividades laborais, por muito tempo, foram realizadas exclusivamente por mulheres e no único espaço permitido a elas, o privado/familiar.  
  • Há termos que definem a mulher em função da sua relação com o homem, como embaixatriz e primeira-dama. Não existem palavras semelhantes para se referir aos maridos das mulheres que ocupam estes cargos.  
  • É comum a adoção do sobrenome do marido, mesmo onde o costume deixou de ser obrigação legal. No sentido original, passava-se a mulher para o homem, como um bem, uma posse. Nos dias atuais, ainda se adota o discurso romantizado de entrega afetiva, unificação da família e respeito às tradições e aos antepassados.  
  • Na sequência de pares feminino e masculino, o feminino sempre é citado em segundo lugar, diz-se: marido e mulher, rei e rainha. Ou o animal macho é sempre citado antes da fêmea, nunca o contrário. (boi e vaca, galo e galinha).  
  • O uso do masculino genérico para se referir a masculino e feminino, anula a presença do feminino. Ao ouvir “funcionários do setor”, o falante faz a associação imediata com um grupo de homens, mas a construção também representa homens e mulheres, quando juntos. Já ao ouvir “pessoas”, o falante não pensa exclusivamente em mulheres.  
  • A escolha de termos como “mulherzinha” para representar fraqueza e covardia, e “macho” para coragem e força.  
  • Ofensas dirigidas às mulheres, independentemente do motivo, em geral utilizam termos que descrevem um comportamento sexual livre, associado ou não à prostituição.  
  • A expressão “mulher honesta" constava, até 2005, no Código Penal, que previa punição para determinados crimes sexuais somente se a vítima se enquadrasse nas “condutas de decência e recato”. O termo foi suprimido, mas o conceito, não. Mulheres que sofrem crimes sexuais ainda têm questionada a sua “honestidade”, devido à roupa que vestem, ao lugar onde estão, como se comportam ou o que fazem.