Integrantes do CineDebate Femifilme, projeto de extensão da UnB e ação do INCT Caleidoscópio. Da esquerda para a direita: Ana Lima, Elisabeth Ruano, Bruna Batista, Andrea Oliveira. De pé: Letícia Alves, Paola Lima e Maria Carmen Gomes. Foto: Anastácia Vaz
Texto: Marina Nery
Façamos um exercício: quais cientistas você conhece? Mentalize nomes. Se sua lista tem Albert Einstein, Isaac Newton, Charles Darwin ou Stephen Hawking, pense mais um pouquinho. Inclua nomes de cientistas nascidos no Brasil. Achou difícil? Honestamente, escolheu alguma mulher?
Se você não conseguiu responder às perguntas acima, saiba que não está sozinho. A pesquisa Percepção Pública da C&T no Brasil (2019), do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), revela que 90% dos entrevistados não se lembram ou não sabem apontar o nome de um cientista brasileiro; um dos menores índices da América Latina. Enquanto isso, entre os 7% que indicaram alguém, os nomes mais mencionados foram o do senador Astronauta Marcos Pontes, dos médicos sanitaristas Oswaldo Cruz e Carlos Chagas e do inventor Alberto Santos Dumont. Nenhuma mulher aparece na lista dos 15 cientistas mais lembrados pelo estudo, que ouviu 2,2 mil pessoas de todas as regiões do país.
Quando o tema é discriminação, quase 90% da população mundial tem algum preconceito contra mulheres. Esse dado consta no Índice de Normas Sociais de Gênero, divulgado em julho de 2023 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). O estudo observou o nível de concordância dos entrevistados com afirmações sobre o papel das mulheres nos âmbitos político, educacional, econômico e de integridade física.
Quase metade das pessoas ouvidas acredita que homens são mais competentes como líderes políticos e 43% afirmam que eles também são melhores nos negócios executivos. Assustadoramente, um a cada quatro entrevistados considera "aceitável" um homem agredir sua parceira, enquanto 28% concordam que cursar uma universidade é mais importante para os homens do que para as mulheres.
A ciência reflete essas crenças preconceituosas enraizadas na sociedade. Apesar dos avanços, as mulheres ainda enfrentam dificuldades para ascensão na carreira, são sub-representadas e sofrem com sexismo, machismo, misoginia e outras violências.
> Confira o Glossário Feminista elaborado pela pesquisadora Camila Galetti
O feminismo, então, é uma forma de trazer diversidade e equidade para a cadeia do "fazer ciência". É um instrumento para promover mudanças e ampliar as perspectivas do campo científico, construídas ao longo dos anos majoritariamente pelos homens e pela centralidade masculina.
"Pontos críticos foram trazidos pelo feminismo para a desconstrução do saber científico, entendido como objetivo e universal, mas que na verdade impõe a sua visão do que é a natureza humana e até mesmo do que é a natureza e o natural", pontua a professora Karla Bessa, coordenadora associada do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e vice-coordenadora do INCT Caleidoscópio, uma rede nacional de pesquisas feministas.
"QUANTO MAIS CONSCIÊNCIA ADQUIRIMOS SOBRE AS DIFERENÇAS QUE NOS CERCAM E DE COMO ESTAS DIFERENÇAS FORAM TRANSFORMADAS EM DESIGUALDADES, MAIS FORÇA E MAIS CLAREZA TEREMOS PARA CONSTRUIR ESPAÇOS INCLUSIVOS, IGUALITÁRIOS E, SOBRETUDO, DEMOCRÁTICOS"Karla Bessa
A pesquisadora cita o artigo Qual foi o impacto do feminismo na ciência?, escrito por Evelyn Fox Keller, professora emérita do Massachusetts Institute of Technology (MIT, EUA). O texto, traduzido pela revista Cadernos Pagu, menciona exemplos de como a pesquisa feita por mulheres (influenciadas ou não pelas teorias feministas) transformam o campo científico.
Até meados da década de 1980, por exemplo, o espermatozoide era a estrela dos estudos de fertilização. Quer dizer que a ciência se debruçava sobre o papel do gameta masculino, enquanto ao óvulo era relegada função coadjuvante nas dinâmicas moleculares.
De acordo com Keller, os cientistas passaram a enxergar óvulos e espermatozoides mutuamente ativos só nas últimas décadas, mudança de extrema importância para a compreensão de novas formas de infertilidade ou para o desenvolvimento de outras estratégias de contracepção.
"Essas referências igualitárias não são retóricas […] e pode-se dizer que os pesquisadores as encontraram porque procuraram por elas", destaca a autora em trecho do artigo.
A docente do MIT reitera que essas visões só foram possíveis pela entrada de mulheres na ciência. Há, inclusive, pesquisadoras na Biologia que se autodenominam "mulheres defensoras dos óvulos", e esse é apenas um dos exemplos de que a ciência não é neutra, mas influenciada por perspectivas de gênero, raça, classe, idade, localização geográfica e outras interseccionalidades.
CIÊNCIA É LUGAR DE MULHER!
Entre as desigualdades na ciência, destaca-se a baixa presença das mulheres nos cursos das chamadas áreas STEM (sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática). Na UnB, elas representam menos de 25% dos estudantes de engenharias e 26% em cursos como estatística e computação.
Já no ensino superior nacional, as matrículas de mulheres nas graduações STEM se aproximam dos 35%, como aponta o estudo A educação STEM e Gênero: uma contribuição para o debate brasileiro, realizado por Elisabete Oliveira em 2019.
Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) de 2018, as mulheres representam 28% do conjunto de pesquisadores no mundo. O percentual diminui em relação à participação delas em posições hierárquicas mais elevadas e ao financiamento das pesquisas.
O levantamento aponta ainda a diferença de gênero nas premiações. Dos 589 prêmios Nobel nas áreas de física, química e medicina, por exemplo, 17 foram concedidos a mulheres. Quanto à produção científica, homens tendem a publicar duas vezes mais que as mulheres. Em consequência, eles são citados com mais frequência que elas.
Além disso, segundo os estudos, há disparidade salarial entre homens e mulheres em todos os níveis, além da tendência de menor reconhecimento financeiro nas carreiras que formam mais mulheres, consolidando a chamada divisão sexual do trabalho. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2022, o rendimento médio das mulheres equivale a 79,3% da média masculina.
O primeiro passo é ver que há desigualdade. Que feminismo não é ‘mimimi’ ou ativismo barato e que não queremos ocupar o lugar do homem. Apenas queremos uma reparação histórica e a igualdade de oportunidades", afirma Mariana Galiza, coordenadora de Comunicação Social do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e mestranda em Comunicação da UnB.
A jornalista defende que o olhar mais plural é bom para toda a sociedade, pensamento reiterado pelas colegas cientistas. "Quanto mais consciência adquirimos sobre as diferenças que nos cercam e de como essas diferenças foram transformadas em desigualdades, mais força e mais clareza teremos para construir espaços inclusivos, igualitários e, sobretudo, democráticos", completa a professora Karla Bessa.
"Feministas pesquisadoras, de diversas áreas do conhecimento, trouxeram significativos questionamentos para a ciência e a tecnologia. Como a importância da participação plena das mulheres e da inserção da perspectiva de gênero na produção do conhecimento", completa a docente Flávia Biroli, do Instituto de Ciência Política (Ipol) da UnB.
Segundo a especialista em questões de gênero, o protagonismo plural de grupos sociais na produção e nas perspectivas científicas expande e aprimora o conhecimento.
OBSTÁCULOS INVISÍVEIS
As desigualdades de gênero, também presentes no meio acadêmico, são explicadas pelo conceito de Labirinto de Cristal. O termo amplia a ideia de Teto de Vidro, criada na década 1970 para descrever a barreira invisível que dificultava o avanço das mulheres em ambientes corporativos.
Entre os obstáculos invisíveis estão: a segregação ocupacional, ou seja, as trabalhadoras são direcionadas para setores e posições com pouca valorização financeira ou com menor potencial de crescimento; a sobrecarga de trabalho e a dificuldade em equilibrar responsabilidades profissionais e familiares; e a falta de representação em cargos de liderança, o que pode afetar a autoconfiança e a aspiração das mulheres em alcançar posições de destaque.
Uma maneira de ilustrar esse impacto nas carreiras acadêmicas é a análise da participação das mulheres nas bolsas de Produtividade em Pesquisa (PQ) em 2023. Levantamento do grupo Parent in Science, sob o recorte gênero/raça, mostra que homens concentram 61,7% das bolsas. Já as mulheres brancas recebem menos de um terço das bolsas, enquanto as pardas representam 4,8% do total e as pretas e indígenas, somadas, não chegam a 1%.
A disparidade se intensifica na observação dos dados referentes a mais elevada modalidade de bolsa (PQ-1A): 68% são designadas a homens; 29,8% para mulheres brancas; 1,3% para as pardas; 0,9% para as amarelas; sendo que as pretas e indígenas não pontuam estatisticamente.
A perspectiva da ascensão de mulheres na carreira científica foi trabalhada no mestrado de Betina Stefanello, egressa da UnB, servidora do CNPq há mais de 20 anos e uma das responsáveis pelos programas de Iniciação Científica e Mulher e Ciência. Inquieta com a pequena quantidade de mulheres na área em que trabalhava (projetos de matemática), começou a estudar e pesquisar. Foi quando entrou na temática de gênero e ciência, que perpassou sua especialização, mestrado e doutorado.
"Enfrentei dificuldades semelhantes às de muitas pesquisadoras: a múltipla jornada de trabalho, a cobrança por um modo de atuação masculino no espaço profissional e acadêmico, a vivência do sexismo automático que te obriga a lutar por espaço, por voz, dentre outros", conta.
Inicialmente, Stefanello buscou entender quais eram os obstáculos para as mulheres progredirem na carreira, lógica explicada pela expressão Teto de Vidro. "Desta pesquisa, propus o conceito Labirinto de Cristal por perceber que as barreiras estão dispostas ao longo de todo trajeto da carreira científica das mulheres e não só no final, para alcançar as posições mais altas. Barreiras não formais, mas concretas", explica.
A pesquisadora afirma que as dificuldades para a participação plena das mulheres ocorrem em todos os marcadores sociais e que os obstáculos são muitos e complexos. Assim, ela defende a implementação de ações específicas e transversais de gênero tanto na política científica quanto em outras políticas públicas.
Stefanello reconhece que a discussão sobre o tema cresceu nos últimos anos e que isso impulsionou iniciativas voltadas à participação e à permanência das mulheres na ciência. "Há uma demanda e um esforço por mudança, mas ainda há muito o que fazer", conclui.
O contexto explicado pela servidora do CNPq é vivenciado cotidianamente por inúmeras pesquisadoras. Com uma trajetória considerada exemplar, a professora da Unicamp Karla Bessa relata as dificuldades que enfrentou para conseguir ser uma cientista de ponta. "Minha mãe terminou o segundo grau quando eu já tinha uns seis anos de idade, depois se formou como técnica de enfermagem. Meu pai era um caixeiro viajante, que começou a trabalhar ainda criança, sem concluir o segundo grau", relembra.
Motivada a estudar, foi a primeira da família a construir carreira universitária, sendo todo o percurso em instituições públicas. Logo, no início da graduação em História, engravidou. "Não tive auxílio institucional nenhum, tive que contar com o suporte da família para conseguir terminar os estudos."
Outro desafio durante a formação acadêmica de Bessa foi trabalhar com o recorte de gênero. "Legitimar as pesquisas, conseguir bolsas, aprovar liberações. Sinto que outras temáticas teriam feito a minha trajetória na academia ser um pouco mais leve", reflete a pesquisadora. Mesmo assim, ela vê com alegria a construção de um cenário mais favorável em comparação ao que ela encontrou ao longo de sua trajetória.
"ENFRENTEI DIFICULDADES SEMELHANTES ÀS DE MUITAS PESQUISADORAS: A MÚLTIPLA JORNADA DE TRABALHO, A COBRANÇA POR UM MODO DE ATUAÇÃO MASCULINO NO ESPAÇO PROFISSIONAL E ACADÊMICO, A VIVÊNCIA DO SEXISMO AUTOMÁTICO QUE TE OBRIGA A LUTAR POR ESPAÇO, POR VOZ, DENTRE OUTROS"Betina Stefanello
MUDANÇA SOCIAL
O relatório Decifrar o código: educação de meninas e mulheres em ciências, tecnologia, engenharia e matemática (STEM), da Unesco (2018), reitera que não há razões genéticas, físicas ou cognitivas que justifiquem a disparidade entre homens e mulheres. Então, como promover rupturas sociais e culturais mais profundas? Os estudos convergem para a construção de políticas e ações que privilegiem as oportunidades de ingresso e permanência das mulheres de todas as faixas etárias e nos vários espaços sociais, além de formação contínua e específica sobre questões de gênero. Esse é o caso da experiência vivenciada, em julho de 2023, por cerca de cem jovens do Instituto Federal de Brasília (IFB), campus São Sebastião.
A primeira sessão do Cinedebate Femifilme, projeto de extensão da UnB em parceria com o IFB, exibiu o longa Que horas ela volta?, escrito e dirigido por Anna Muylaert. O intuito da ação é trazer para perto dos estudantes temas como desigualdade social, feminismo e dificuldades para ingresso de jovens de baixa renda na universidade.
"Essa ação é uma das quatro frentes de um projeto maior, que chamamos de Caleidoscópio. Une estudantes do ensino médio e nossas alunas do ensino superior para debater temas importantes e fazê-los pensar", explica a professora do Departamento de Estudos Latino-Americanos da UnB, Elizabeth Ruano.
> Conheça a rede de pesquisas feministas INCT Caleidoscópio
A docente é uma das proponentes e organizadoras do INCT Caleidoscópio, rede nacional de estudos interdisciplinares sobre temáticas feministas e antirracistas, com sede na Universidade de Brasília e que congrega núcleos e laboratórios de pesquisa de 24 instituições de ensino superior.
"Escrevemos o projeto coletivamente e submetemos ao edital [do CNPq] em que fomos aprovadas. Ficamos muito felizes, pois esse é o primeiro INCT feminista do país", afirma a docente do Instituto de Letras da UnB Viviane Resende, coordenadora da rede. "Esse INCT é muito importante por ser um lugar de luta, resistência e embate para todos os campos da ciência", destaca.
Uma das propostas é atuar junto às escolas de ensino médio com atividades, exibição de documentários, promoção de debates e divulgação de podcasts feitos pelas professoras e estudantes vinculadas ao projeto.
"Queremos uma mudança de perspectiva, de imaginário, e mostrar às jovens as possibilidades que estão dadas, para alargar seus horizontes em relação à sua atuação no mundo", explica.
"Nosso projeto também fará um levantamento de dados e informações sobre aspectos relacionados à violência institucional, principalmente no âmbito universitário. Além de propor atividades intergeracionais para que meninas e mulheres possam entender e até identificar essas violências que são sofridas ao longo da sua vida, e depois produzir pesquisas sobre isso também", reforça Maria Carmen Gomes, professora de Estudos Discursivos Críticos, Corpos e Interseccionalidades na UnB.
Além de sinalizar as mudanças que a crítica feminista tem construído ao longo de várias décadas, o projeto tem a intenção de fazer parcerias para alavancar prêmios e capacitar professores do ensino médio, outra forma de diminuir desigualdades.
PIONEIRAS DA CIÊNCIA NO BRASIL
Homenagem às mulheres que contribuíram para o desenvolvimento científico e tecnológico no país, as fotos que ilustram esta reportagem foram cedidas pelo projeto Pioneiras da Ciência, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A iniciativa dá visibilidade às pesquisadoras, cujas histórias costumam ser ocultadas dos registros oficiais.
"Estas pioneiras abriram as portas do saber e do poder. Do saber, porque cada uma delas teve um importante papel para sua área de conhecimento. Do poder, porque provaram que as mulheres não são só aptas para a ciência quanto esta não pode prescindir de sua contribuição", destaca o projeto.
> Conheça a história das mulheres homenageadas no projeto Pioneiras da Ciência