Os biólogos Micheline Silva e Paulo Câmara durante coleta no arquipélago de Svalbard, Noruega. Foto: Ian Lara/Projeto Parelelo 60.
Texto: Vanessa Vieira
Elas estão por toda parte: nos troncos de árvores, proliferando-se em muros e paredes, nas rochas escorregadias que pisamos em uma cachoeira e até mesmo nas inóspitas regiões polares. São erroneamente chamadas por alguns de "lodo", mas há grandes chances de acerto se identificadas como "musgos". Estamos falando das briófitas, plantinhas que não despertam a atenção da maioria de nós, mas são a paixão de pesquisadores que percorrem milhares de quilômetros apenas para estudá-las.
"Essas plantas conseguem sobreviver a temperaturas e condições extremamente adversas. Algumas delas ocorrem somente no Ártico e na Antártica, sem presença em áreas intermediárias do planeta. São condições, no mínimo, curiosas e de grande interesse científico", aponta Paulo Câmara, professor do Instituto de Ciências Biológicas (IB) da Universidade de Brasília (UnB) e um dos coordenadores da expedição.
E para estudá-las os pesquisadores foram até o povoado mais setentrional do planeta: a vila Longyearbyen, localizada no arquipélago de Svalbard, na Noruega. "O Polo Norte em si é água, fica no meio do Oceano Ártico. Como trabalhamos com biologia terrestre, nosso interesse foi na porção de terra não congelada mais ao norte do planeta. Por isso escolhemos Longyearbyen, onde mais de dez países mantêm estações científicas. O Brasil ainda não tem presença lá", situa Câmara sobre a expedição realizada em julho de 2023.
O botânico já está acostumado ao frio polar, só que no outro extremo do globo. Há mais de uma década ele coordena o projeto Evolução e dispersão de espécies antárticas bipolares de briófitas e líquens (BryoAntar), abarcado pelo Programa Antártico Brasileiro (ProAntar), e explica a importância de ter expandido os estudos. "Muito do que estudamos na Antártica só pode ser plenamente entendido com dados do Ártico. O que acontece hoje no Ártico é mais ou menos o que veremos na Antártica daqui a alguns anos", assegura.
Micheline Carvalho Silva, docente do IB, também integrou a expedição. "Tínhamos pouco material do Ártico, agora temos uma coleção razoável para avançar nos estudos. Coletamos penas das aves, solo, rochas, tapetes de musgos e um pouco de gelo. Esse material nos fornecerá dados para compreender a distribuição que chamamos de bipolaridade, com plantas tão ao sul e tão ao norte do planeta e sem ocorrência na zona tropical", acrescenta a doutora em Botânica e engenheira florestal.
Os materiais coletados seguem em análise e processamento no Laboratório de Criptógamas do Departamento de Botânica da UnB, o que inclui etapas como identificação e classificação científica das amostras e extração de DNA. Em seguida, parte do material fica armazenado no Herbário da UnB, que já reúne mais de cinco mil amostras das briófitas antárticas, constituindo o maior acervo desse grupo na América Latina. Já o DNA fica armazenado em um ultrafreezer a -80 °C. "São materiais que possibilitam às próximas gerações realizar pesquisas sem precisar ir a campo", indica Paulo Câmara.
Parte da coleta segue para a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e para a Universidade Católica de Brasília (UCB), que participaram da expedição e investigam temáticas complementares. Pela UFMG, os cientistas Luiz Henrique Rosa e Vivian Nicolau estudam fungos e sua aplicação biotecnológica. Já o docente Marcelo Ramada, da UCB, trabalha principalmente com genoma, envolvendo a pesquisa de grandes volumes de DNA.
A Universidade de Brasília, juntamente com a UFMG, esteve na coordenação desse marco oficial do país no Ártico, com apoio do Programa Antártico Brasileiro, fomento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, da Marinha do Brasil, e demais instituições envolvidas.
TESOUROS ESCONDIDOS
E não são apenas das briófitas que os cientistas da UnB estão atrás. Eles procuram por uma riqueza invisível a olho nu: a diversidade críptica, termo oriundo da palavra grega Kryptos, que significa escondido.
"São microrganismos que vivem nos tapetes de musgo ou na neve. Seres como fungos, bactérias ou bichinhos invertebrados dos quais pouco se ouve falar, como os rotíferos, colêmbolos, tardígrados. São seres extremamente interessantes, a exemplo o vírus de 48 mil anos encontrado recentemente no solo congelado da Sibéria e que foi trazido de volta à vida. O que esse organismo tem que o permitiu sobreviver após tanto tempo?", instiga Paulo Câmara sobre essa diversidade microscópica.
O biólogo compartilha dados sobre o potencial de descobertas da pesquisa polar. "O estudo dos materiais coletados na Antártica e agora no Ártico resulta em cerca de 10 a 15% de DNA desconhecido. São coisas nunca identificadas, não batem com o material cadastrado nos bancos de pesquisa. Não é verme, inseto, bactéria, vírus. Mas tem DNA e, portanto, é um ser vivo. Imagina quanta descoberta está guardada ali", destaca o docente da UnB.
Ele explica que, por se tratar de organismos muito pequenos, é difícil fazê-los crescer em meio de cultura (método usado em laboratório para viabilizar o estudo de microrganismos), tornando complexa sua identificação. "Estamos falando de DNA que se repete em várias amostras colhidas. Portanto, sabemos que são organismos comuns nas regiões polares. Mas que organismos são esses?", aponta Paulo Câmara.
Mas os achados também trazem alertas. "Não sabemos que tipo de organismos podem aparecer com o degelo, quais mudanças eles podem desencadear no ecossistema local, e os potenciais riscos à saúde humana", pondera Micheline sobre o aparecimento de microrganismos "adormecidos" há milhares de anos como consequência do derretimento do gelo polar.
Algo parecido aconteceu em 2016, em uma zona remota da Sibéria, quando o governo russo confirmou a contaminação de mais de dois mil cervos, o óbito de uma criança e o contágio de 21 pessoas com antraz – doença rara causada pela bactéria Bacillus anthracis. Estudos atestaram a presença do microrganismo no solo e na carcaça de um cervo que emergiu após ficar mais de 75 anos em uma camada de solo congelado cujo derretimento foi causado pela onda de calor daquele verão. Essa foi a provável causa da contaminação humana e animal.
GEOGRAFIA EM FOCO
O arquipélago de Svalbard, anteriormente conhecido como Spitsbergen, é o ponto da terra permanentemente habitado mais próximo do Polo Norte geográfico (a cerca de mil quilômetros) e pertence à Noruega. As massas terrestres mais próximas são a Groenlândia a Oeste, a Escandinávia ao Sul e a Rússia a Leste. É conhecido por suas paisagens deslumbrantes, com montanhas nevadas e geleiras, e pelo fato curioso de ter mais ursos polares do que pessoas habitando seu território.
A cidade de Longyearbyen é o principal assentamento, abriga estações de pesquisas, além do Global Seed Vault – um gigantesco banco de sementes construído em 2018 para proteger a diversidade genética de culturas alimentares de todo o mundo.
GEOPOLÍTICA
A dimensão multidisciplinar da pesquisa evidencia quão estratégico é para o Brasil produzir conhecimento não apenas sobre sua própria vegetação, mas atuar em locais remotos.
"A importância do Ártico em escala planetária é inquestionável. O derretimento do gelo Ártico constitui uma mudança irreversível e irreparável nas diferentes escalas de espaço e tempo, afetando não apenas as comunidades ali residentes como também as plantas e os animais, geralmente representados nas mídias pelo caso de ameaça gravíssima à sobrevivência dos ursos polares", assegura Paulo Câmara.
Com o degelo, novas rotas comerciais marítimas passam a ser viáveis, "diminuindo o custo dos fretes ao mesmo tempo em que reduz a importância histórica dos canais de Gibraltar e Suez", acrescenta o pesquisador. Outra consequência do degelo é facilitar "a exploração de recursos naturais na área, tais como petróleo e gás natural, contribuindo assim para o maior acirramento das atuais tensões entre as potências polares."
O biólogo alerta para o fato do Brasil ser o único entre as 12 maiores economias do mundo a não ter nenhuma participação no Conselho do Ártico. "Como podemos ver, o que ocorre no Ártico afeta o clima e a geopolítica global, incluindo o Brasil (que possui parte de seu território no hemisfério norte) e não podemos, portanto, nos abster de ter voz nas instâncias que lidam com esse delicado assunto", defende.
Em contrapartida, desde 1975 o Brasil compreendeu as motivações de ordem geopolítica e econômica para aderir ao Tratado da Antártica e se tornar um dos protagonistas da ciência na região. "Nosso Programa Antártico (ProAntar) é um indiscutível caso de sucesso e nos qualifica para contribuir com estudos científicos também no Ártico – que, nesse caso, envolve uma logística bem menor e mais simples, tornando viável sua realização", complementa Paulo Câmara.
Entre os possíveis temas para estudo na região estão a acidificação do oceano, mudanças das correntes glaciais, eventos extremos, organismos invasores, migração da fauna, liberação dos gases de efeito estufa e bactérias metanogênicas.
BRASIL E O TRATADO DE SVALBARD
Assinado em 9 de fevereiro de 1920, em Paris, o Tratado de Svalbard reconheceu a soberania da Noruega no arquipélago e em suas águas territoriais. O acordo garante que todos os países signatários tenham igualdade de direito no acesso aos recursos naturais da região, sendo que a exploração e as medidas de proteção ambiental ficam a cargo da Noruega. O tratado proíbe militarização na região.
Nos anos iniciais, o acordo reuniu 14 países signatários, atualmente é ratificado por 46 nações, incluindo países latinos como Argentina, Chile e Venezuela. Em maio de 2022, a Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM), órgão da Marinha do Brasil responsável pelo ProAntar, publicou a Resolução nº 4/2022 que destaca "a importância das questões polares para o Brasil, sob enfoques econômico, geopolítico, estratégico e ambiental" e sinaliza o interesse do órgão em favor da aderência do país ao Tratado. A proposta aguarda apreciação da Presidência da República, por intermédio dos Ministérios da Defesa e das Relações Exteriores.
A VEZ DAS BRIÓFITAS
Briófitas são plantas de pequeno porte que geralmente habitam lugares úmidos. Um dos principais empecilhos para seu crescimento é a ausência de vasos condutores de seiva, inviabilizando o transporte de águas e nutrientes para grandes distâncias.
São classificadas em três filos: Marchantiophyta, Anthocerotophyta e Bryophyta – esse último corresponde aos musgos. As briófitas estão entre as plantas que conseguem sobreviver às extremas temperaturas das regiões polares.
POR DENTRO DA TAXONOMIA
Biologia é a ciência que estuda diferentes formas de vida. Para organizar o conhecimento, essa área adota o sistema de Classificação Científica, também chamado de Taxonomia. Trata-se de uma maneira de agrupar e categorizar os organismos a partir de critérios como morfologia, fisiologia, genética e reprodução.
São sete as categorias taxonômicas: reino, filo, classe, ordem, família, gênero e espécie. Reino é a categoria mais abrangente e, na outra ponta, espécie é a unidade de classificação dos seres a partir de suas características exclusivas.
Um dos ramos da Biologia é a Botânica, voltada para o estudo de organismos que produzem seu próprio alimento por meio da fotossíntese, como plantas e algas. Outro ramo é a Zoologia, dedicada ao estudo da vida dos animais.
Veja abaixo a taxonomia de uma briófita estudada pelos cientistas nas regiões polares.
DESCOBERTAS DA ERA DO GELO
Um vírus que estava congelado há quase quinhentos séculos no solo da Sibéria foi reativado em laboratório. Denominado Pandoravirus yedoma, o organismo foi encontrado por uma equipe de cientistas liderada pelo francês Jean-Michel Claverie, professor aposentado de genômica na Escola de Medicina da Universidade Aix-Marseille em Marselha, França.
Os pesquisadores estudaram 13 cepas de vírus coletados na região e mostraram que eles poderiam voltar a infectar outros seres vivos, no caso, amebas cultivadas em laboratório para uso no experimento. O trabalho de Claverie busca chamar atenção para as possíveis consequências do degelo do Ártico e mais especificamente do permafrost – camadas subterrâneas de solo congelado –, cujo ritmo avançado de derretimento deve ocasionar a liberação de enormes quantidades de microrganismos nas próximas décadas. Saiba mais na reportagem do Jornal da Unesp.
Assista abaixo a reportagem da UnBTV com os pesquisadores.
NÓS FAZEMOS CIÊNCIA
Paulo Câmara é professor do Instituto de Ciências Biológicas da UnB e coordenador do Projeto BryoAntar. Doutor em Botânica pela Universidade do Missouri-Saint Louis e Missouri Botanical Garden.
Micheline carvalho Silva é professora do Instituto de Ciências Biológicas da UnB e vice-coordenadora do Projeto BryoAntar. Doutora em Botânica pela Escola Nacional de Botânica Tropical do Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Projeto de Pesquisa: Evolução e dispersão de espécies antárticas bipolares de briófitas e liquens (BryoAntar) no âmbito do Programa Antártico Brasileiro (ProAntar)
Saiba mais: www.bryoantar.unb.br