Análise inédita de sequenciamento do genoma da ave sugere que alterações genéticas impactaram cognição e longevidade

 

Texto Gisele Pimenta

Ilustrações Ana Rita Grilo

 

O louro da avó tem 40 anos, faz graça e fala palavrões. O do vizinho canta o hino nacional. Ainda tem aquele que apareceu na televisão e imita gambá, chimpanzé, gato, porco e cachorro. Duvida? Navegue pela internet e busque pela expressão “papagaios famosos”. O repertório de vídeos, alguns com milhões de visualizações, é gigantesco.

 

Conhecidos pela inteligência e capacidade de imitar a fala humana, os papagaios despertam a atençãoda comunidade científica. É o caso de um grupo de especialistas de instituições do Brasil e dos Estados Unidos, que divulgou recentemente resultados inéditos sobre o sequenciamento do genoma do papagaio- -verdadeiro (Amazona aestiva, no nome científico). As informações foram publicadas em dezembro de 2018 na revista científica internacional Current Biology.

 

É a primeira vez que uma pesquisa identifica características genéticas exclusivas da espécie, com destaque para aspectos relacionados à longevidade e cognição. “É um trabalho de base, mas importante, pioneiro, e com enorme repercussão para a ciência. No futuro, pode se tornar um modelo interessante para se entender, por exemplo, como os humanos aprendem a falar ou até mesmo para estudar o envelhecimento”, aponta a professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB) Maria Sueli Felipe, que integra a equipe de pesquisa.

 

O projeto de sequenciamento do genoma do papagaio-verdadeiro começou há quase dez anos e reuniu profissionais da Biologia, Neurociência e Informática, entre outras áreas. Integração essencial para se fazer pesquisa de impacto, afirma Claudio Mello, coordenador da pesquisa e professor da Universidade de Saúde e Ciência de Oregon (OHSU) nos Estados Unidos: “Não basta estudar um genoma, o mais importante é comparar os dados de várias espécies para, então, tentar entender características únicas de determinado grupo de organismos”.

 

O estudo envolveu preparo e sequenciamento de DNA, esforços computacionais e de bioinformática, análise genômica comparativa, além de conhecimentos de ornitologia, genética e neurociência. “É muito difícil para um laboratório dominar todos os campos de especialização ou trabalhar isoladamente. Por isso, é fundamental se fazer pesquisa multidisciplinar e colaborativa”, pondera Mello, que é médico formado pela UnB.

 

Os pesquisadores relacionaram as informações obtidas pela análise genômica do papagaio-verdadeiro com dados de 23 outros tipos de aves já sequenciadas por estudos anteriores, incluindo espécies que também vivem por muito tempo. Trata-se, portanto, da maior comparação de informações genéticas de vertebrados de longa vida.

 

Além da UnB, participaram profissionais vinculados às instituições de ensino do Pará (UFPA), Ceará (UFC), Rio de Janeiro (UFRJ), de Minas Gerais (UFMG), Viçosa (UFV), São Paulo (USP), ao Laboratório Nacional de Computação Científica, ao Museu Paraense Emilio Goeldi, e às universidades estadunidenses Rockefeller (Nova York), Johns Hopkins (Baltimore) e de Saúde e Ciência de Oregon (OHSU, Portland).

 

ACHADOS

 

As descobertas sugerem que modificações em determinados genes do papagaio-verdadeiro têm potencial para influenciar os mecanismos que estendem os anos de vida nesses animais. Há indícios de que a longevidade das aves observadas tenha relação com alterações na atividade do gene TERT, componente- -chave da enzima telomerase, uma das responsáveis pela proteção contra o envelhecimento celular.

 

ANIMAL LONGEVO

 

Nome comum Papagaio-comum, papagaio-verdadeiro ou louro.

 

Nome científico Amazona aestiva.

 

Distribuição geográfica Sudoeste do Brasil, Paraguai, Bolívia e norte da Argentina.

 

Habitat Floresta úmida ou seca, bosques de palmeiras ou margens de rios.

 

Características Testa e nuca azuis, cabeça amarela, bico escuro, corpo é verde.

 

Tamanho Cerca de 35 centímetros, pesando entre 400 e 450 gramas.

 

Alimentação Sementes e frutos nativos. No geral, usa a pata esquerda para levar o alimento à boca.

 

Reprodução Com hábitos monogâmicos, a reprodução é de setembro a dezembro. Põe de dois a quatro ovos por ninhada, que se abrem após um mês de incubação. Os filhotes nascem pelados, demoram a abrir os olhos e são cuidados e alimentados pelos pais por cerca de 60 dias.

 

Longevidade A média de vida é de 40 anos, mas pode chegar aos 80.

 

Fontes: Biossegurança Fiocruz WWF Brazil

 

Foto Glaucia Seixas/Divulgação

 

“A redução no tamanho dos telômeros é interpretada como sinal de degradação biológica. Nossas observações sugerem que o TERT, ao longo do processo evolutivo, sofreu mutações que alteraram sua atividade, de modo que a telomerase, nesses papagaios, seria mais ativa, retardando o processo de envelhecimento das células”, detalha Claudio Mello, em entrevista concedida à Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp).

 

A pesquisa indica outros fatores que também podem estar associados à longevidade destas aves, entre eles aspectos relacionados ao reparo do DNA, progressão do ciclo celular e processamento de RNA. Todavia, o próprio trabalho reitera a necessidade de novas pesquisas para aprofundar essa compreensão e futuras interrogações experimentais podem levar a avanços em nossa compreensão da extensão do tempo de vida dos animais.

 

COGNIÇÃO

 

Os papagaios-verdadeiros têm cérebro grande e capacidades cognitivas bastante acentuadas, comparadas a outras aves. Segundo o coordenador da pesquisa Claudio Mello, eles superam mamíferos, incluindo primatas não humanos (macacos e lêmures), em alguns comportamentos: “Um bom exemplo é a capacidade que os papagaios possuem de reter o interesse por um objeto por longo tempo, mesmo quando eles não estão mais vendo o artefato”.

 

Na análise genômica da ave, há apontamentos para fundamentar a hipótese sobre a existência, nos papagaios, de genes ligados ao desenvolvimento, fisiologia e comportamento neural. “Uma coisa é expressar o som, isso vários pássaros fazem com o canto. Outra é a conexão neural para o aprendizado e a imitação do som. Parece simples, mas está tudo conectado no cérebro. Se a conexão neural não funcionar adequadamente, a ave não vai soltar a fala”, sintetiza Maria Sueli Felipe.

 

A docente faz uma analogia entre esses pássaros e crianças para ilustrar a afirmação: “Os bebês aprendem a falar por repetição e continuam fazendo isso até certa idade. Depois, começam a formular frases sozinhos. O papagaio para neste ponto. Ele não consegue formular frases, seu aprendizado da fala humana é por repetição. Entretanto, na natureza, ele desenvolve seus próprios dialetos. Como isso acontece? É algo que me instiga desde criança”.

 

A pesquisadora acrescenta que a compreensão deste processo pode impactar, por exemplo, os estudos sobre a fala humana. “Quem sabe daqui a 50 anos não seja um modelo para descobrir alguma falha de conexão neural que impede a fala de pessoas mudas? Esse é um exemplo. A aplicação é diversa. Vai depender do olhar e da pergunta científica lançada ao genoma sequenciado”, projeta a pesquisadora.

 

A partir desta referência, outras pesquisas podem surgir, como estudos sobre deficiência gênica ou mutações responsáveis pelo desenvolvimento da cognição, de acordo com o biólogo e professor visitante da Faculdade de Medicina da UnB Marcus Teixeira, que também participou da pesquisa. “Será possível buscar associações sobre o contexto evolutivo das aves, desenvolver novos marcadores moleculares, estabelecer relações genéticas entre aves, bem como comparar o genoma de espécies que têm aprendizado com as que não têm”, prevê o professor.

 

Na visão de Teixeira, a pesquisa reconhece a relevância internacional da UnB e revela a importância do investimento em pesquisa desde a graduação. “Neste estudo, estão presentes três gerações de pesquisadores da Universidade de Brasília. Claudio Mello e eu fomos alunos de iniciação científica da professora Maria Sueli. Ou seja, o incentivo desde a base é fundamental para se colher bons frutos”, finaliza.

 

Você sabia?

 

• Não é preciso autorização para se criar um papagaio em ambiente doméstico. No entanto, ele só pode ser adquirido junto a criatórios autorizados. A origem legal da espécie é comprovada pela nota fiscal emitida pelo estabelecimento, além do anel de alumínio, com número de registro, que envolve o pé do animal

 

• Por ser de fácil domesticação, o papagaio-verdadeiro é a ave mais vendida no Brasil e no exterior. É o melhor falador da família dos psitacídeos e uma das espécies mais capturadas ilegalmente para tráfico e comercialização de animais.

 

• Nos anos de 1500, quando os portugueses desembarcaram no Brasil, o país foi chamado de Terra dos Papagaios. Hoje denominadas pelo gênero amazona, ao todo são conhecidas 12 espécies da ave no território nacional.

 

Fonte: ICMBio / Ibama / MMA

 

Glossário científico

 

Genética – Ciência voltada para o estudo da hereditariedade, estrutura e funções dos genes. DNA (genômico) – Encontrado no núcleo das células, carrega a informação genética dos seres vivos. Em linguagem mais técnica, é uma molécula de ácido desoxirribonucléico em forma de duas fitas, formada por quatro tipos de estruturas químicas menores, as bases nucleotídicas adenina (A), citosina (C), guanina (G) e timina (T). A ordem dessas bases é chamada de sequência de DNA.

 

RNA – Molécula de ácido ribonucléico. Também tem forma de fita, sendo composta por bases nitrogenadas iguais ao DNA, no entanto, a timina (T) é substituída por uracila (U).

 

Gene – Pequenas seções de DNA que codificam o RNA e as moléculas de proteína requeridas por um organismo. É a parte funcional do DNA genômico que carrega toda a informação genética de um organismo e que será passada de uma geração para a outra.

 

Cromossomos – Moléculas longas e únicas de DNA. São sequências lineares de genes. Cada organismo tem um número diferente de cromossomos. O ser humano, por exemplo, tem 23 pares de cromossomos, somando um total de 40 mil a 100 mil genes.

 

Genoma – O conjunto completo de fatores hereditários contidos nos cromossomos. Ou seja, o grupo de genes que define determinada espécie.

 

Sequenciamento – Técnica utilizada para determinar em que ordem as bases, contidas no DNA, se encontram.

 

Fontes: Revista ComCiência (LabJor/Unicamp) Nature Education Glossário em Biossegurança (Fiocruz)

 

Fotos Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

NÓS FAZEMOS CIÊNCIA

 

Quem são os pesquisadores:

 

Maria Sueli Felipe é pesquisadora 1A do CNPq, professora titular aposentada e colaboradora sênior da UnB. Atualmente, é presidente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e docente na Universidade Católica de Brasília. Tem experiência na área de Bioquímica, com ênfase em Biologia Molecular.

 

Marcus de Melo Teixeira é professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Patologia Molecular da Faculdade de Medicina da UnB. Biólogo e pesquisador filiado à Northern Arizona University (NAU), trabalha com temas relacionados à Biologia Evolutiva, Genética de Populações e Genômica Comparativa de Fungos Patogênicos Humanos.