Reportagem

Aos 103 anos, Milton Thiago de Mello, um dos pioneiros na produção de penicilina e nos estudos de Primatologia, esbanja irreverência e vitalidade

 

 

Texto Robson G. Rodrigues

 

Inquieta e afiada, a mente de Milton Thiago de Mello não dá indícios da idade que tem. Ela acumula conhecimento há 103 anos e parece não ter limite de espaço. Pelo contrário: expande-se a cada dia, já que o dono desta mente brilhante, pesquisador e ex-professor da Universidade de Brasília, continua ainda se aprofundando nos diversos assuntos de seu interesse, em geral, relacionados a Primatologia e a Microbiologia.

 

De currículo tão extenso como a vida, Milton está sempre disposto a arrancar um sorriso do interlocutor com seu humor afiado. Ele recebeu a reportagem da revista Darcy na casa cercada de verde no Lago Norte, onde vive com a esposa Ângela. Na varanda, acomoda-se onde pode apreciar a vasta vegetação e a vista para o lago. “Se sentar de costas para a paisagem é ofensa pessoal”, brinca. Tudo pronto, só falta um detalhe: “Vou colocar os óculos para parecer um cientista. Tem que iludir o povo”. 

 

Dentro da casa, estão lado a lado decorações, relíquias e utensílios que têm dezenas ou até centenas de anos e que dão um ar de museu privativo ao lugar. Fotos por ali revelam um título menos lembrado da trajetória: o de bisavô. Milton tem quatro filhos, cinco netos e dois bisnetos. No escritório do professor, não faltam pilhas de papel. São, em geral, publicações já feitas ou que pretende fazer. Também não faltam medalhas. “Veja você, o que é ser um bom vigarista”, afirma, rindo.

 

Um macaquinho em pelúcia guardado no escritório tem um significado especial para o pesquisador e remete à vasta experiência em Primatologia. O estudo científico dos primatas – ao qual dedicou 20 anos só na UnB, publicou 220 textos científicos, incluindo artigos e livros – garantiu-lhe uma justa homenagem. Divulgada em 2016, uma espécie de macaco da Amazônia descoberta em 2011 leva seu nome: Callicebus miltoni. Os bichos desse gênero, também conhecidos como zogue-zogue rabo de fogo, costumam entrelaçar suas longas caudas alaranjadas quando estão reunidos nos galhos das árvores. Além disso, possuem uma faixa grisalha na testa e costeletas e garganta escuras.

 

É incalculável a contribuição de Milton para a saúde pública. Com a equipe do Instituto Oswaldo Cruz (1944), da qual fazia parte o professor Amadeu Cury, ex-reitor da UnB, foi responsável pela primeira produção de penicilina – o mais difundido antibiótico usado na Medicina – fora dos Estados Unidos e da Inglaterra, durante a Segunda Guerra Mundial. Depois, dedicou-se ao estudo de doenças bacteriológicas transmitidas ao homem a partir de animais (zoonoses), como brucelose e peste bubônica, tornando-se especialista nesses assuntos.

 

Realizou pesquisas sobre brucelose na Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), com bolsa da Fundação Guggenheim. Foi membro do Comitê de Peritos em Brucelose da OMS/FAO em Genebra e consultor da Organização Panamericana da Saúde nos EUA, México, El Salvador, Guatemala, Peru, Haiti e República Dominicana sobre os seguintes temas: brucelose, peste bubônica, primatologia, bem-estar animal e veterinária.

 

A memória e a disposição física do professor impressionam. Ele recusa ajuda para subir e descer escadas e faz contas aritméticas com velocidade. “Normalmente, um cara de 103 anos não só está se arrastando fisicamente, como também mentalmente. É o comum, o biológico. Sou uma exceção”, reconhece Milton, que hoje é cobaia de estudos sobre longevidade.

 

Milton Thiago de Mello nasceu em 5 de fevereiro de 1916. O carioca graduou-se em 1937 pela Escola de Veterinária do Exército, no Rio de Janeiro, e doutorou-se em Microbiologia, em 1946, pela Escola Nacional de Veterinária. Junto às Forças Armadas, construiu uma carreira bem-sucedida e chegou a ser coronel. Atualmente, é presidente da Academia Brasileira de Medicina Veterinária. Foi vice-presidente da Sociedade Latino-Americana de Bem-Estar Animal, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor do Instituto de Microbiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 

A carreira prolífica rendeu a Milton 40 distinções e prêmios nacionais e internacionais. A lista não para de esticar. Em 2013, recebeu, na República Tcheca, a mais alta honraria da Medicina Veterinária mundial, o Prêmio John Gamgee, concedido durante o 31º Congresso Mundial de Veterinária.

 

“Agora, em novembro, é possível que vá receber mais homenagens em Teresópolis. Já recebi tudo o que se pode receber em macacologia. Um dia, num congresso mundial, pensaram: ‘O professor Milton está com cem anos, temos de fazer uma homenagem para ele, mas já fizemos tudo, não tem mais com o que homenagear’. Aí veio essa “homenagem especial”, em Nairobi, Quênia.

 

Milton foi professor de microbiologia, decano de Pesquisa e Pós-Graduação e fundador do Centro de Primatologia. Chegou à instituição ainda nos anos 1970 e instalou-se no Laboratório de Microbiologia e Imunologia criado por Isaac Roitman. Em Brasília, estreitou uma relação que havia começado na UFRJ, já que Isaac foi aluno da pós-graduação da instituição carioca. Àquela altura, Milton já era um profissional veterano. “Era muito fácil ser amigo dele. Sempre foi muito educado. As pessoas se davam bem com ele”, lembra Roitman, 80 anos.

 

“Tenho a impressão de que todas as atividades que ele fez no Brasil e no exterior foram louváveis, a gente não põe defeito”, elogia Roitman, que encontrou o amigo Milton pela última vez em 2018, em um evento do Instituto de Ciências Biológicas da UnB. “Notei como o corpo dele mostrou, claro, sinais de avanço da idade, mas também como ele está muito bem mentalmente, com o humor refinado que sempre teve. Eu falava para ele que ele era imortal”, comenta, entre risos.

 

De acordo com Milton, a própria longevidade é explicada pelo estilo que cultivou ao longo da vida. Nunca seguiu dietas, também nunca fumou. Até hoje, não dispensa uma dose de uísque. Segundo ele, o carinho das pessoas queridas que o cercam é como um escudo para pequenas agressões ao organismo. Conduzindo alunos, ele realizou, pela última vez, uma expedição para a Amazônia com 91 anos, subindo em árvores e galgando barrancos.

 

Um receio de Milton é que se perca todo o conhecimento acumulado durante um século de vida dedicada aos estudos. “Espero ainda que, quando eu morrer, alguém ponha um playback no meu cérebro pra tirar aquela quantidade de coisas. Tive um professor que dizia que memória ocupa lugar. Mas comigo não está ocupando, não. Está aberta ainda para ocupar mais coisas”, diverte-se.

 

Sem parar de trabalhar, Milton segue ministrando palestras, produzindo trabalhos e livros, e participando de congressos Brasil afora. Lê e escreve dezenas de linhas todos os dias. Em 2016, lançou Poste de Cozumel, um livro de memórias em que recorda passagens de sua vida pessoal e profissional. O título faz analogia a uma estrutura conhecida no Brasil como poste-de-fita, com sete faixas, ao redor do qual as pessoas dançam. Na memória, cada faixa representa um aspecto da vida do professor: família, Exército, veterinária, ciência, ensino, sociedades e vida internacional. Entre outros, o professor planeja publicar um artigo sobre o consumo de carne artificial. 

 

Apesar de frequentemente arriscar-se em previsões do futuro, o professor já não acompanha as tecnologias correntes tão de perto desde os anos 1990. “Até hoje não me aproximo desses aparelhos”, diz, olhando com cara desconfiada para o celular do repórter. “Sou o único cidadão que não tem celular. Há 20 anos, vivia-se sem isso. E por que não posso continuar vivendo assim? Estou errado para o mundo de hoje, mas conservo meu cérebro e meu tempo”, contesta.

 

Com uma bagagem secular nas costas, Milton não se acomoda no prestígio que tem, tampouco se deixa vencer pelas adversidades impostas pela idade. Ao longo de cem anos, não deu tempo de fazer tudo. Pesquisas abandonadas e afetos não distribuídos, diz ele, “ficarão para os próximos cem anos”.

 

"O SEGREDO É A AMIZADE"

 

Darcy – Qual o segredo da longevidade?

Milton Thiago de Mello – Todos me perguntam isso. Perguntam se é genético. Bom, genético não é. Todos os meus parentes morreram idosos, mas com 70, 80 anos. Por aí. É um fenômeno. Tentei averiguar isso primeiro cientificamente, porque fui cientista durante décadas.


Darcy – O senhor foi a própria cobaia?

MTH – Sim. Hoje, existe um projeto aqui em Brasília sobre longevidade me tomando como cobaia central. Todo mundo me pergunta o segredo. Não sigo dieta. Nada. Agora que a ciência mundial está debruçada sobre isso, comecei a dizer que se deve aos amigos. O segredo é a amizade. 


Darcy – Por quê?

MTH – Não precisa ser amigo de dia a dia, de beijinhos e abraços. É ter uma atitude amigável para a vida. Em vez de ter a cara franzida, não rir de anedota, não tomar um traguinho. O importante é viver uma vida independente e ter uma atitude amigável perante as pessoas. Minha memória é outra parte do fenômeno. 


Darcy – Qual dica o senhor daria para as novas gerações?

MTH – Se vocês quiserem progredir, têm de sair da trilha. É importante fazer os sidelines [trilhas alternativas]. Para fazer diferente, tem de arcar com a indiferença e a má vontade dos que estão na trilha. Tem que ter muque físico. E, principalmente, muque intelectual. 


Darcy – O senhor empresta seu nome para a espécie de primata Callicebus miltoni. Como surgiu esta homenagem?

MTH – Um dos meus alunos que, desde 1983 ia à Floresta Amazônica, encantou-se com o assunto macaco. No interior da Amazônia, ainda existem lugares poucos explorados. Por isso, existem bichos e plantas desconhecidos. Se alguém quer descobrir alguma planta nova ou um bicho, deve perder o amor à civilização, e entrar lá. Esse aluno se embrenhava na Amazônia e foi descobrindo bichos. Um deles foi esse macaquinho, que faz parte de um grande grupo, Callicebus. E deu meu nome, em homenagem. Quando a pessoa descobre um bicho, tem que justificar a escolha. Então ele me encheu de elogios. Muito bonito pro nosso ego. Gostei muito.


Darcy – Como foi fazer uma expedição à Amazônia com 91 anos?

MTH – Eu só não vou agora porque preciso de ajuda para me locomover. Já não posso subir em barranco. Para entrar numa voadeira [tipo de embarcação], preciso que alguém me ponha. Fica meio vergonhoso. Se não, estaria lá. Então, me levam para fazer conferências, contar minha experiência de vida.