Retirada irregular de fósseis é contrabando científico, e casos emblemáticos lançam luz sobre a importância desse patrimônio para o Brasil

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Texto: Marcela D’Alessandro

 

Quando se ouve falar em paleontologia, é comum vir à cabeça a imagem de dinossauros enormes, com dentes afiados, pescoços alongados, corpos rechonchudos, musculosos e pesados. Mas, quem diria? Foi um fóssil do tamanho de uma galinha que chamou a atenção do mundo no final de 2020. 

 

Em dezembro daquele ano, o periódico científico Cretaceous Research publicou artigo em que descrevia, pela primeira vez, o dinossauro Ubirajara jubatus – que tinha o corpo e uma longa cauda cobertos por penas, além de estruturas rígidas nos ombros nunca observadas em outras espécies. Ele habitava a Bacia do Araripe, no interior do Ceará, há cerca de 110 milhões de anos. 

 

Com a divulgação, descobriu-se não apenas a nova espécie de dinossauro, brasileira, mas que ela havia sido retirada irregularmente do país. Hoje, o fóssil está sob guarda do Museu de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha. Nenhum paleontólogo do Brasil sabia da existência desse material e não havia o registro adequado da exportação para a Europa, supostamente em 1995, no então Departamento Nacional de Produção Mineral, hoje Agência Nacional de Mineração. 

 

Com a (re)descoberta do fóssil, iniciou-se um processo de apuração, requisição de autorizações e outras medidas que resultaram em um grande movimento pela repatriação do Ubirajara jubatus. Paleontólogos e simpatizantes da causa em todo o mundo mobilizaram as redes sociais, pedindo a volta do dinossauro emplumado. 

 

Após muito engajamento institucional e social, o que se conseguiu até o momento foi a inédita despublicação do artigo científico – com a permissão para republicação após a repatriação do material – e a morosa concordância do museu alemão em devolver o fóssil, o que ainda não ocorreu. 

O professor da Faculdade UnB Planaltina (FUP) Rodrigo Santucci foi paleontólogo do Departamento Nacional de Produção Mineral e era vice-diretor da Sociedade Brasileira de Paleontologia à época em que o caso do Ubirajara jubatus veio à tona. 

“Trocamos cartas com os autores do trabalho, com o editor da revista científica e eles davam desculpas. Falaram de uma autorização de 1994, mas o documento não tinha registro do peso da caixa, fotos, número de lacre. Não dizia o que era”, relembra o docente. 

 

Legislação e direitos

 

As leis brasileiras que tratam sobre fósseis estão dispersas em vários dispositivos. Em 1942, o então presidente Getúlio Vargas expediu decreto que determinava que fósseis encontrados em território nacional pertencem ao Brasil, e qualquer atividade de coleta e movimentação desse material para o exterior deve ser previamente autorizada e fiscalizada pelo governo. 

 

Quase 50 anos mais tarde, portaria assinada pelo então ministro da Ciência e Tecnologia (MCT), Décio Leal Zagottis, aprova o regulamento sobre a coleta, por estrangeiros, de dados e materiais científicos no Brasil. De acordo com o dispositivo de 1990, o interessado deve assegurar a exclusiva utilização do material em atividades de estudos, pesquisas e difusão. A comercialização dos resultados e a sua cessão a terceiros ainda depende de acordo prévio com o ministério, que estabelecerá a participação brasileira nos direitos de propriedade intelectual. 

 

Ilegalidade e retorno

 

A legislação nacional existente não abarca pontos sobre a repatriação de materiais, mas vale a regra de ouro internacional de que os fósseis pertencem ao país em que foram encontrados e devem permanecer por lá, salvo exceções relacionadas a fins acadêmicos e científicos ou casos específicos de salvamento do patrimônio. 

 

De acordo com o professor Rodrigo Santucci, o Brasil tem recebido bastante material de repatriação, alguns de maneira voluntária. A UnB Planaltina, por exemplo, guarda 13 exemplares de mesossauros que retornaram da França após serem retirados ilegalmente do Brasil dentro de livros religiosos, segundo o processo. A investigação durou cerca de dez anos e envolveu até a Organização Internacional de Polícia Criminal, Interpol. 

 

“Esses fósseis são típicos do Brasil. Retirá-los do lugar de origem prejudica parte do estudo científico, porque não temos informação da localidade, se eles vieram de São Paulo, Goiás, Paraná, Rio Grande do Sul. Mas existem outros estudos que conseguimos fazer com os materiais”, explica o paleontólogo da FUP. 

 

Ricardo Lourenço Pinto, também paleontólogo e docente do Instituto de Geociências (IG) da UnB, considera cada uma das repatriações uma vitória, mas pondera que a situação é mais complexa. 

“No Brasil, carecemos de valorização patrimonial, de reconhecer que esse patrimônio precisa ser preservado. Precisamos urgentemente melhorar nossa educação científica incluindo isso nas fases iniciais do ensino, não só em nível universitário”, afirma. 

 

O professor do IG ressalta que, além do conhecimento científico, estudar os fósseis contribui para compreender a história da vida no planeta. “Entender a própria origem do ser humano como um produto desse processo evolutivo, entender as mudanças climáticas que ocorreram e que deveriam nos preocupar. Como poderíamos prever e antecipar eventuais problemas num futuro?”, provoca Ricardo Pinto. 

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