Reação Humana e Científica

 

Ilustração Marcelo Jatobá 

artigo reitora

 

Texto Márcia Abrahão*

 

No momento em que escrevo este texto, já se vão mais de nove meses desde que a Universidade de Brasília iniciou as medidas de isolamento social para evitar a propagação do novo coronavírus. Com o apoio da família, dos amigos e dos colegas da Universidade, vamos vivendo este difícil período.

 

Infelizmente, os casos de covid-19 chegaram à nossa comunidade. Toda a minha solidariedade aos que contraíram a doença e àqueles que perderam pessoas queridas nesta pandemia. Desejo que sejam fortes em meio ao sofrimento e às muitas incertezas que nos assolam.

 

Ao longo de todo esse tempo de atividades não presenciais, o Comitê Gestor do Plano de Contingência em Saúde da Covid-19 da UnB (Coes) emitiu boletins epidemiológicos que, a partir de rigorosos critérios científicos, embasaram as decisões tomadas em diversas instâncias. 

 

Ações de cuidado foram promovidas pelo Subcomitê de Saúde Mental e Apoio Psicossocial do Coes, em parceria com a Diretoria de Atenção à Saúde da Comunidade Universitária (Dasu), o Hospital Universitário (HUB) e as unidades acadêmicas. Também acompanhamos os membros da comunidade que estão no exterior e demos treinamento para empresas e trabalhadores terceirizados que atuam na UnB.

 

A preparação para a fase de recuperação da pandemia foi coordenada pelo vice-reitor, professor Enrique Huelva, que preside o Comitê de Coordenação das Ações de Recuperação (Ccar). Houve amplo debate, trabalho colaborativo e uma pesquisa social inédita, que nos ajudou a mapear nossas condições socioeconômicas, de saúde e de acesso à tecnologia. 

 

A partir desse levantamento, o Decanato de Assuntos Comunitários (DAC) lançou editais de apoio à inclusão digital para estudantes de graduação dos cursos presenciais e a distância e para estudantes de pós-graduação stricto sensu. O amplo diálogo para prover condições de conectividade (computadores e internet) contemplou o Diretório Central dos Estudantes (DCE) e representantes discentes da assistência estudantil e indígenas.

 

Em outra frente, o Centro de Educação a Distância (Cead) promoveu uma série de ações para melhor preparar nossos docentes para ministrar aulas no formato não presencial, em caráter emergencial. A Coordenação de Integração das Licenciaturas, do Decanato de Ensino de Graduação (DEG), também contribuiu na preparação de profissionais para o uso de novas ferramentas de ensino e aprendizagem.

 

Iniciativas selecionadas pelo Comitê de Pesquisa, Inovação e Extensão de Combate à Covid-19 (Copei) receberam financiamento, por meio de editais, do Decanato de Pesquisa e Inovação (DPI) e do Decanato de Extensão (DEX). Recursos vieram também da Fundação de Apoio à Pesquisa do DF (FAP-DF) e dos ministérios da Educação (MEC) e da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Além disso, lançamos edital para receber doações.

 

Paralelamente a essa nossa organização interna, continuamos ativos em diversas ações de enfrentamento da covid-19 junto à sociedade, em demonstração inequívoca do nosso compromisso social. Destaco aqui a atuação do HUB no combate à covid-19 e a participação da UnB, em parceria com o Instituto Butantan, no ensaio clínico para testar a eficácia da vacina CoronaVac.

 

Há também exemplos de afeto e solidariedade. No projeto Cartas Solidárias, mensagens de agradecimento foram enviadas aos profissionais na linha de frente do combate à doença. A Maratona Covidas-UnB, organizada pelo Parque Científico e Tecnológico da UnB (PCTec) e pelo Copei, desenvolveu soluções para a retomada. A cerimônia de premiação da maratona, virtual, foi emocionante. 

 

O retorno de forma não presencial buscou minimizar prejuízos na formação dos estudantes. A eventual volta à presencialidade partirá do mesmo princípio. A comunidade compreendeu que temos de estar irmanados para fazer o melhor possível, sempre. Continuaremos somando esforços para que a pandemia recue o mais rapidamente possível. Nossa prioridade é salvar vidas. 

 

Instituição científica e de educação pública de alto nível, a UnB seguirá dando exemplo para a sociedade. Internamente, vamos continuar atuando com planejamento, responsabilidade, solidariedade e ampla discussão antes de passarmos para as demais etapas do Plano de Retomada das Atividades. Vamos continuar atentos às necessidades da comunidade universitária, sempre em diálogo com estudantes, técnicos e docentes, que souberam se adaptar ao novo momento conforme as necessidades de seus institutos e faculdades, seus cursos e suas disciplinas.

 

Este momento atípico, composto de uma série de adaptações, ainda não tem prazo para terminar. A reflexão sobre ele ainda tomará espaço e tempo de nosso ensino, nossa pesquisa e extensão. A notícia de que a revista Darcy elegeu como tema principal a pandemia e as ações da UnB durante esse período vem carregada de orgulho e esperança. Com a leitura do pensamento e da realidade expostos nestas páginas, os próximos meses serão mais serenos e cheios de sabedoria, tenho certeza.

 

 

 

Pandemia e vírus: a solução está na ciência

 

Texto Bergmann Ribeiro*

 

Uma epidemia pode ser definida como o aparecimento e espalhamento rápido de uma doença infecciosa em uma população, afetando grande número de pessoas em um período curto de tempo. Já uma pandemia é uma epidemia de grandes proporções, que impacta uma grande região, continente inteiro ou todo o planeta. 

 

Na história da humanidade, as maiores pandemias foram causadas por vírus. A varíola (um poxvirus) resultou na morte de 300 milhões de pessoas até 1979, quando foi erradicada. O sarampo (um paramyxovirus), por sua vez, vitimou 200 milhões de pessoas até 1963. O vírus da gripe espanhola (um vírus influenza) foi responsável pela morte de 75 milhões de seres humanos no começo do século passado, e o HIV (um retrovírus), causador da síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids), matou 30 milhões de pessoas, desde o começo da década de 1980. 

 

Agora estamos passando por mais uma pandemia de origem viral, o coronavírus Sars-Cov-2, responsável pela covid-19. Causou a morte de mais de 1 milhão e 300 mil pessoas em menos de um ano de sua descoberta. No Brasil, o primeiro caso confirmado de infecção foi em 26 de fevereiro de 2020 e, menos de dez meses depois, mais de 167 mil pessoas haviam morrido. 

 

Mas o que são vírus? Os vírus são parasitas intracelulares obrigatórios de dimensões submicroscópicas presentes em todos os lugares, como no ar que respiramos, na água que bebemos, na comida que comemos, nas superfícies que tocamos. São constituídos de ácidos nucléicos, proteínas e, em alguns casos, lipídios. 

 

Os vírus utilizam-se obrigatoriamente das células para a sua reprodução e perpetuação. Apesar de os vírus serem responsáveis por diversas enfermidades em animais e plantas, a grande maioria, não causam doenças. Nos seres humanos, podem causar desde doenças comuns até as mais letais, além de desempenharem papel no desenvolvimento de muitos tipos de câncer. 

 

Entretanto, os vírus também podem ser úteis aos seres humanos. Alguns são usados como biopesticidas para controle de pragas agrícolas, como agentes antibacterianos, anticâncer, vetores para produção de vacinas e de moléculas usadas como medicamentos. 

 

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre os 1.400 patógenos (organismos capazes de causar doenças) humanos conhecidos, mais de 50% têm origem em espécies animais, ou seja, são doenças ou infecções naturalmente transmitidas entre animais e humanos. Muitos vírus são capazes de infectar diferentes espécies de animais, outros são altamente específicos, infectando uma ou poucas espécies relacionadas. 

 

Por volta de 10 mil anos atrás, com o surgimento da agricultura, a aproximação de grupos humanos e animais levou à transmissão de doenças entre espécies de animais (domesticados e para consumo). Por exemplo, acredita-se que que o sarampo surgiu provavelmente de um vírus causador de uma doença de bovinos e que se divergiu em uma doença exclusivamente humana. 

 

O HIV originou-se de um vírus de chimpanzés que foi transmitido ao ser humano pela caça e consumo desses animais. O surgimento de novas doenças por patógenos emergentes que infectam diferentes animais é resultado da aproximação do ser humano com diferentes animais.

 

Diversos fatores podem estar envolvidos na emergência de novas doenças, como mudanças climáticas e ambientais. Secas prolongadas, por exemplo, favorecem o surgimento de doenças pulmonares causadas por hantavírus, que são vírus transmitidos por roedores silvestres que buscam comida nas casas e nos depósitos de produtos agrícolas em ambientes rurais. 

 

Aumento das chuvas e mudanças na temperatura do planeta podem favorecer a expansão da área de atuação de vetores de doenças tropicais como o mosquito Aedes aegypti, transmissor de diversas viroses como dengue, zika e chikungunya. Além disso, o aumento da população humana gerou o aumento da demanda por produtos industrializados e alimentos. 

 

Como consequência, o impacto das atividades do ser humano no planeta aumentou, culminando na extinção de centenas de espécies e no aparecimento de novas doenças. Outros fatores ambientais podem favorecer o surgimento de patógenos emergentes, como construções de barragens em rios, desflorestamento, avanços na velocidade e volume do transporte global.

 

A diversidade de vírus no planeta é praticamente desconhecida. O Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus (ICTV) reconhece atualmente apenas 6.590 espécies de vírus. Estima-se que, no mundo, existam mais de 8,7 milhões de espécies animais. Só de insetos, são mais de 1 milhão de espécies diferentes e por volta de 6.600 espécies de mamíferos. Se cada uma pode ser infectada por vírus diferentes, podemos concluir que o nosso conhecimento sobre vírus ainda é muito incipiente. Desta forma, precisamos nos preparar para enfrentarmos novas pandemias no futuro e, para isso, não existe outra saída além da ciência. 

 

Nesse mundo de profundas mudanças, a ciência e os cientistas têm papel fundamental no direcionamento das políticas públicas. No caso da atual pandemia, os países que levaram em consideração os conselhos de cientistas de como agir foram os que obtiveram melhores resultados na contenção da covid-19. 

 

Precisamos incentivar a formação de futuros cientistas e dar condições para que uma ciência de qualidade seja feita no país. Entretanto, os recentes cortes no orçamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF) vão na contramão da sensatez. 

 

* Virologista, professor titular do Instituto de Ciências Biológicas (IB) da Universidade de Brasília

 

 

A UnB e uma Vacina: a reafirmação necessária em um contexto crítico

 

Texto Gustavo Adolfo Sierra Romero*

 

Haverá sempre uma saída se trilharmos a rota do pensamento científico para fundamentarmos as nossas escolhas quando a sombra da morte nos ameaça. A certeza de que um futuro melhor está aí para ser alcançado por meio do progresso científico e a inovação tecnológica sempre será o melhor cenário de luta contra a pandemia de covid-19 ou de qualquer outro flagelo que ameace a nossa sobrevivência.

 

Infelizmente há os que atacam brutalmente esse futuro ao negar o conhecimento científico, obstaculizando a possibilidade de superar os nossos limites. É preciso que, mais uma vez, dominemos as adversidades e revisemos conceitos e paradigmas no contexto de um planeta que agoniza como fruto inegável da nossa própria cegueira. No Brasil, lamentavelmente o cenário é afetado pela desinformação e o ataque sistemático à comunidade científica que produz o novo conhecimento que poderá evitar que o impacto da pandemia seja ainda maior.

 

Apesar do ambiente hostil, as instituições de pesquisa científica e as universidades públicas recorreram a sua tradição de resistência para contrapor à onda obscurantista com projetos colaborativos à altura do desafio que a pandemia representa. Assim, o país ganhou destaque na busca de soluções com múltiplas iniciativas, dentre as quais se destaca o desenvolvimento clínico de algumas das vacinas mais promissoras no mundo. 

 

A rota para que a UnB participasse de uma dessas iniciativas foi longa. Ela reflete, ao meu ver, a caminhada emblemática das instituições que oportunamente colhem os frutos daquilo que foi investido nas pessoas que nelas se formaram. Parece-me também emblemático o fato de eu ter nascido na Guatemala e, sendo acolhido pela Universidade de Brasília para fazer a pós-graduação em Medicina Tropical, ter escolhido o Brasil como a minha pátria. 

 

Esse Brasil acolhedor deu-me a oportunidade de continuar na pesquisa como professor da Faculdade de Medicina e de trilhar um caminho que se nutriu do crescimento desfrutado pelas instituições federais de ensino e pesquisa, nas décadas em que o Estado apostou na educação superior como uma agenda prioritária para o desenvolvimento do país. Assim, a minha construção como pesquisador clínico usufruiu desse cenário e, com a participação de muitos e muitas, assumi algum protagonismo para qualificar o Núcleo de Medicina Tropical (NMT) como instituição relevante na pesquisa clínica no Distrito Federal.

 

Essa construção institucional continuada na pesquisa clínica permitiu que o NMT iniciasse uma parceria com o Instituto Butantan de São Paulo para o desenvolvimento de uma vacina para dengue em 2016. Assim, quando surgiu a pandemia de covid-19, o Instituto Butantan procurou os parceiros para enfrentar o desafio de realizar o Ensaio Clínico Fase III duplo-cego, randomizado, controlado com placebo para avaliação de eficácia e segurança em profissionais da saúde da vacina adsorvida covid-19 (inativada) produzida pela Sinovac (PROFISCOV), contando com a participação do NMT.

 

A pandemia tem exigido respostas rápidas. A celebração dos acordos entre a UnB e o Instituto Butantan encontrou a Universidade em estado de alerta, em um processo de simplificação burocrática e com um espírito ímpar de colaboração que facilitou a assinatura dos instrumentos de cooperação. Paralelamente, o Hospital Universitário de Brasília (HUB) acolheu o projeto com vontade política, eficiência administrativa e execução primorosa para que a pesquisa pudesse ser implementada de acordo com a qualidade exigida pelas boas práticas clínicas.

 

A tramitação efetiva no sistema composto por Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) também deve ser destacada positivamente, ao mostrar um país onde a institucionalidade de foros com ampla participação democrática permite que pesquisas sejam apreciadas oportunamente, atendendo padrões éticos exigidos no Brasil e no exterior.

 

A participação como voluntária/o num ensaio clínico envolve a apreciação dos riscos inerentes à pesquisa e os potenciais benefícios. Os ensaios clínicos controlados, como o estudo PROFISCOV, são especialmente desafiadores. Participar implica na possibilidade de ser sorteado para receber um placebo, o que reduz os possíveis benefícios que adviriam se o produto vacinal em investigação for eficaz e seguro – e que só os/as participantes que recebem o produto ativo obtêm.

 

Por isso, a participação das/dos profissionais de saúde do Distrito Federal, voluntários no estudo Profiscov, é também emblemática. Traduz um país que não renunciou à busca de soluções e que tem como fundamento relações entre pessoas que estão imbuídas da inteligência e dos afetos, que têm a solidariedade como norte e abrem espaço para atitudes próximas do altruísmo, o que, certamente, reflete a possibilidade de construção coletiva de futuros melhores e mais justos.

 

O desafio de implementar o estudo PROFISCOV só foi vencido com a colaboração das/dos que se dispuseram a participar nas diversas funções que um ensaio clínico exige: farmacêuticas/farmacêuticos, médicas/médicos, enfermeiras/enfermeiros, técnicas/técnicos de enfermagem, técnicas/técnicos de laboratório, auxiliares de pesquisa e assessoras de comunicação que compõem a equipe executora.

 

A experiência também tem sido relevante para defender o desenvolvimento dos produtos vacinais como soluções coletivas, num contexto em que centenas de cientistas resistem à pressão de interesses econômicos e colocam de lado a insanidade de uma competição desnecessária entre as diversas iniciativas. É um momento em que há e sempre haverá espaço para todas as vacinas que demonstrem a necessária eficácia e segurança. 

 

Finalmente, a oportunidade tem sido ímpar para reafirmar categoricamente que a boa ciência exige um tempo de amadurecimento para a produção de conhecimento válido. E que a devida parcimônia não deve sucumbir frente a pressões de caráter político ou de qualquer natureza que atentem contra os princípios sobre os quais se fundamenta.

 

* Professor associado do Núcleo de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília