Entrevista

 

O momento é novo e diferente e traz desafios inéditos. A professora, psicóloga e diretora da Dasu, Larissa Polejack Brambatti conversou com a Darcy sobre impactos da crise sanitária na saúde mental

 

 

Texto Marina Simon

 

Cada pessoa vai assimilar a pandemia a sua maneira, dependendo de sua história de vida e rede de apoio. Mas, de uma forma ou de outra, iremos todos passar por mudanças significativas. “É uma oportunidade de ressignificação de muitas coisas, inclusive da nossa posição no mundo e relação com as pessoas”. Estes são alguns aprendizados importantes de uma pandemia, de acordo com a professora do Instituto de Psicologia (IP) Larissa Polejack Brambatti.

 

Diretora de Atenção à Saúde da Comunidade Universitária, a docente acredita que, mesmo transcorridos vários meses desde o início da pandemia, ainda temos muito aprendizado pela frente. E confessa que um dos grandes desafios do momento é compreender que nosso comportamento de agora vai influenciar os desdobramentos da crise. “Uma das coisas que me preocupa agora é que, por estarem cansadas de viver sob estresse tanto tempo, muitas pessoas estão negando a realidade. E isso coloca todo mundo em risco”, reflete. 

 

Graduada em Psicologia pela UnB, Larissa é especialista em Psicodrama e em Educação Permanente em Saúde, mestre em Psicologia Clínica (UnB), doutora em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde (UnB) e pós-doutora em Saúde Coletiva (UFRGS) e em Saúde Pública pelo Department of Global Community Health and Behavioral Sciences da School of Public Health and Tropical Medicine (Tulane University/New Orleans/EUA). 

 

A professora falou, nesta entrevista à Darcy, sobre os principais distúrbios psíquicos que podem surgir durante uma pandemia, as ações de apoio psicossocial oferecidas à comunidade pela UnB, deu dicas práticas para pais lidarem com os filhos em casa e fez um alerta: “É sinal de saúde reconhecer que se está precisando de ajuda. Quem está adoecido pode ter a percepção equivocada de que está tudo bem, que está dando conta. O normal, num momento de crise, é estarmos mesmo diferentes”. 

 

Darcy – Sairemos muito diferentes desta pandemia?

Larissa Polejack Brambatti – É difícil prever o que vai acontecer, mas já é possível observar mudanças importantes. A experiência da pandemia tem nos ensinado muito e nos feito rever as relações, por exemplo. Logo no início, com a situação de emergência, foi preciso se organizar rapidamente numa nova forma de rotina e relação com o trabalho, a escola, as pessoas, os amigos. Tivemos até que fazer uma ressignificação do uso da tecnologia. 

Depois tivemos que lidar com as perdas que a pandemia trouxe. Não só a perda concreta que, infelizmente, muitas famílias experimentaram – a perda de pessoas queridas –, mas as perdas subjetivas, como, por exemplo, de projetos, viagens, etc. Algumas coisas precisaram ser revistas, adiadas. 

 

Todo mundo vai passar por várias mudanças ao longo deste processo, pois ainda não saímos dele. Ainda tem muito aprendizado pela frente. Cada um vai significar essa experiência a sua maneira, dependendo de sua história de vida, rede de apoio e compreensão. 

 

Pessoas estão tendo adoecimento,  agravamento de sua saúde mental. Provavelmente, já tinham alguma predisposição e tiveram isso agravado agora, seja pelo isolamento, pelo medo da morte, do adoecimento de alguém querido, ou porque teve perdas concretas, como de recursos financeiros ou de emprego. Isso aumenta a ansiedade. 

 

No nosso caso, na Universidade, tivemos que aprender rapidamente sobre o acesso remoto, seja para a aula on-line ou o home office. Foi preciso estabelecer nova relação professor-aluno. É tudo muito novo e diferente e cada um vai ressignificar isso de uma maneira. 

 

Mas, de forma geral, tenho ouvido que, dentro das famílias, pessoas estão redescobrindo o convívio familiar. Estão aprendendo a ter mais tempo com os filhos, a observar mais as crianças e os adolescentes, a participar mais de suas vidas. E tem também aqueles que tiveram situações de conflito exacerbadas por essa convivência próxima. Infelizmente, temos relatos de violência doméstica. 

 

Algumas pessoas têm descoberto que, mesmo em casa, é possível manter a rotina, o trabalho, o lazer. Mas muitos ainda estão com dificuldade de fazer esse manejo de tempo. Então é importante, neste momento, não generalizar. É importante entender que cada um vai reagir de uma maneira e que isso pode mudar também ao longo do tempo. Uma pessoa que começou reagindo bem, pode agora estar se sentindo cansada, adoecida. Enquanto outras que começaram com muito medo, mais adoecidas, acharam seu equilíbrio e sua medida.

 

Darcy – Estamos enfrentando tantos desafios, profissionais, pessoais, familiares. Você poderia destacar os principais? 

LPB – Um dos grandes desafios neste momento é compreender que ainda estamos em processo e que depende muito do nosso comportamento agora o que vai acontecer depois. Uma das coisas que me preocupa neste momento é que muitas pessoas estão cansadas de viver sob estresse tanto tempo e estão partindo para negação da realidade. 

 

A negação significa que a pessoa acha que está tudo bem, que o pior já passou, que pode ter sua vida normal. O problema é que isso coloca todo mundo ainda mais em risco. Quanto mais se negar a realidade, não se cuidar, não mantiver o distanciamento, não usar máscara, mais tempo vamos ficar nesta pandemia. 

 

Então, com certeza, tem sido, para todos nós, uma oportunidade de ressignificação de muitas coisas, inclusive da nossa própria posição no mundo e relação com as pessoas. Uma oportunidade de entender que esta pandemia afetou o mundo inteiro, e isso é um fenômeno importante.

 

Darcy – Quais transtornos psíquicos específicos podem ser desenvolvidos durante uma pandemia?

LPB – A gente percebe um aumento grande na ansiedade, pois há uma ameaça concreta. A ansiedade é uma resposta natural do corpo. Neste momento, é importante que as pessoas se acolham. Se estão percebendo alguma mudança em seu padrão de comportamento, isso é natural, pois, de fato, estamos vivendo uma crise. O mais inquietante, na verdade, são pessoas que estão negando a realidade, as que acham que é tudo besteira. 

 

E qual é a medida do nível de ansiedade? Se a ansiedade começa a interferir na qualidade do sono, na alimentação – seja comendo demais ou comendo de menos –, se há um aumento no consumo de álcool (e temos percebido isso) e outras drogas para aliviar a ansiedade, aí é um sinal de alerta, um momento de procurar ajuda. 

 

Importante ressaltar que é sinal de saúde reconhecer que precisa de ajuda. Quem está adoecido pode ter a percepção equivocada de que está tudo bem, que está dando conta. O normal é estarmos diferentes, mais ansiosos e preocupados. 

 

Outro aspecto importante é a depressão. Muita gente que ficou em isolamento foi ficando deprimido. Nós somos seres sociáveis, pra gente é importante o afeto, o contato, o abraço, isso nos alimenta. Algumas pessoas –  principalmente as que moram sozinhas ou têm uma fraca rede de apoio – sentiram mais esse isolamento, o que pode ter agravado algum quadro anterior de depressão. 

 

Então é importante perceber alguns fatores, como, por exemplo, se há ânimo para fazer as coisas. E não é só se tem tristeza – é esperado estarmos mais tristes vendo tantas mortes e gente sofrendo –, mas tem que estar atento aos sinais, se isso está afetando sua vida, se você já não consegue fazer as coisas, se começam a vir pensamentos da sua própria morte ou a pensar nela também, aí é hora de pedir ajuda.

 

É importante não esperar o quadro se agravar para procurar ajuda. Nem sempre essa ajuda vai ser um atendimento psicológico. Pode ser participar de uma das ações coletivas que estamos promovendo na UnB ou ainda começar a prestar atenção nas coisas que te fazem bem, como um contato com a natureza, leitura, música, poesia. Incluir na rotina coisas que te fazem bem é uma forma de aliviar o estresse. 

 

Existem vários canais de ajuda, além dos que estamos promovendo na UnB. Outras universidades e órgãos estão oferecendo apoio e o próprio Centro de Valorização da Vida (CVV) está funcionando. Bateu o desespero, não tem com quem falar, o CVV está atendendo.

 

Darcy – Você mencionou os canais de apoio psicológico promovidos pela UnB. Quais são eles?

LPB – Quando começamos a ter notícias dos primeiros casos de covid-19, ainda na China, nos antecipamos e criamos um comitê gestor para criar um plano de contingência da Universidade, com comitês e subcomitês, incluindo o que a 

Dasu coordena, de Saúde Mental e Apoio Psicossocial. 

 

Oferecemos atendimentos individuais; grupos terapêuticos para estudantes, docentes e técnicos; ações de prevenção para evitar o adoecimento, e várias práticas de cuidado on-line e coletivo, como oficina de mindfulness, relaxamento, meditação. Tem a campanha Você não está Sozinha, Você não está Sozinho, que é o que aparece em todas as nossas ações, que é mostrar o sentido de pertencimento e dizer que estamos juntos enfrentando isso. 

 

Criamos ainda dois grupos on-line, um deles para ensinar psicólogos a atender de forma remota. O curso é pensado para os voluntários que vieram trabalhar conosco, pois essa é uma nova realidade para a Psicologia e que acabou servindo como disciplina para o curso de Psicologia. Estamos ainda com três grupos de luto, oferecidos por estudantes da pós-graduação que fizeram ou estão fazendo essa disciplina. 

 

São várias frentes, incluindo a prevenção do adoecimento e a promoção da saúde. A solidariedade é outro fator de proteção importante e temos várias frentes: UnB Solidária, Cartas Solidárias (a comunidade escreve cartas para profissionais da saúde, de cemitério, do SLU, Samu), arrecadação de tablets para hospitais públicos proporcionarem visitas virtuais a pessoas internadas com covid-19.

 

Darcy – Como vai ser essa política de promoção da saúde da Universidade? 

LPB – A UnB é uma universidade promotora da saúde e estamos encabeçando esse movimento nacional. Existe uma rede brasileira de promoção da saúde, a qual a UnB aderiu em 2018. E agora estamos puxando a adesão de mais universidades para essa rede. 

 

Fizemos, na Semana Universitária, uma pré-conferência para a construção de uma política de promoção da saúde para a Universidade. Depois fizemos a conferência em outubro, com nove grupos de trabalho em diferentes assuntos, entre eles saúde mental e processos educativos promotores da saúde. E, a partir disso, tiramos indicações para a política de promoção da saúde da Universidade, que é o próximo passo.   

 

Esse é um movimento que começou na década de 1990, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) chamou as universidades e as escolas para participarem, entendendo que esses lugares podem ser promotores de adoecimento, mas são potencialmente promotores de saúde. Temos alguns eixos para trabalhar, como ambiência, as relações, os vínculos, o protagonismo. É super importante trabalharmos isso, pois se tem uma coisa que vai nos ajudar nesse momento de pandemia com tantos desafios é fortalecer a nossa comunidade. 

 

Um dos princípios da promoção da saúde é o envolvimento comunitário na resolução de seus problemas e o reconhecimento dos diferentes saberes na busca de soluções. Então temos feito muito isso, esse é o grande mote. Na UnB, a construção dessa política foi feita com o envolvimento da comunidade. Construímos os encontros e a Conferência de Promoção da Saúde junto com o Diretório Central dos Estudantes (DCE), a Associação dos Docentes da Universidade de Brasília (ADUnB) e o Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Universidade de Brasília (Sintfub).

 

Darcy – Como estão as ações em torno da saúde mental durante a pandemia no âmbito federal? 

LPB – A nossa resposta nacional está muito ruim e isso é um problema. Uma coisa preocupante é que os planos de contingência dos ministérios não têm discutido a saúde mental e o apoio psicossocial à população. A própria OMS chamou a atenção dos países para esse apagão, pois é preciso organizar respostas em relação à saúde mental. E isso a UnB fez diferente desde o início. Uma das questões fundamentais como resposta de emergência numa época de pandemia é ter uma liderança clara e uma coordenação nesse processo, que é o que temos na UnB. 

 

Do ponto de vista do Distrito Federal (DF) e do próprio ministério, não existe essa mesma estrutura que organizamos na UnB. Os planos de contingência da própria Secretaria de Saúde do DF e do Ministério da Saúde não abordam a saúde mental. E isso vai custar caro para nós como país. As redes de apoio psicossocial estão funcionando normalmente, mas não numa resposta coordenada, não com ações preventivas.

 

Na UnB, por exemplo, começamos a oferecer grupos de luto para as famílias. E essa não é uma ação que vem acontecendo nacionalmente. E isso deveria estar acontecendo, pois são muitas perdas que a população vem enfrentando. A gente vive um luto coletivo, não dá para fechar os olhos para isso. 

 

Darcy – A pandemia alterou a rotina de todo mundo, incluindo das crianças, que passaram praticamente o ano todo sem escola. Quais estão sendo os maiores desafios dos pais em relação aos filhos? 

LPB – Sim, estou passando por isso. Tenho duas filhas, uma de nove e uma de 16 anos. Inclusive temos um grupo para pais, sobre educação dos filhos em tempos de pandemia. Ele é oferecido pela professora Regina Pedrosa. Temos esse grupo desde o início, justamente reconhecendo essa nova rotina. É uma demanda muito grande, de repente, temos que ser tudo: pai, professor e um pouco psicólogo também para acolher, pois as crianças estão sentindo muito a falta de contato, ausência dos amigos, sem poder brincar, ir à escola. Se para nós é difícil passar muitas horas na frente do computador, imagina para a criança? Não é fácil.     

 

É importante que os pais entendam que as crianças respondem à forma como eles estão. Se estão ansiosos, preocupados, nervosos, agitados, irritadiços, isso vai ter impacto na criança. É interessante tentar manter a serenidade e abrir o diálogo em casa, para perguntar como a criança está e o que ela está entendendo do que está acontecendo, quais são seus medos. É importante reconhecer que a criança tem uma leitura do mundo, também está sentindo a pandemia, lendo notícias, sendo exposta. 

 

Temos ouvido relatos também de mudança no comportamento das crianças: a que dormia sozinha voltou a dormir com os pais; voltou a fazer xixi na cama. Isso é um reflexo da ansiedade, do medo, da insegurança. Às vezes, é hora de entrar com algum apoio psicológico, dependendo de como a criança está lidando.