Em nove anos, 27 mestres, 11 doutores e mais de 50 alunos de graduação passaram pelo Laboratório de Tecnologia de Medicamentos, Alimentos e Cosméticos – unidade que protagoniza entre tantas outras pesquisas a do cupuaçu. Acima (esq. para dir.): professor Guilherme Gelfuso, graduanda Ana Luiza Nascimento, doutoranda Geisa Barbalho e professora Taís Gratieri. Foto: Anastácia Vaz
Texto: Marcela D’Alessandro
O sabor e o cheiro são singulares. Fruto típico da região Norte do Brasil, o cupuaçu é alimento marcante na culinária amazônica. Revestido por casca dura, sua polpa é rica em carboidratos, vitaminas A, B1, B2 e C, e sais minerais. Seus benefícios, no entanto, vão muito além dos nutritivos. Geralmente descartada pela indústria alimentícia, a semente do cupuaçu pode ser uma nova fonte de investimentos para outros dois ramos: o da farmacêutica e o da cosmética.
Estudos realizados no Laboratório de Tecnologia de Medicamentos, Alimentos e Cosméticos (LTMAC) da Faculdade de Ciências da Saúde verificaram que o extrato das sementes, que tem alta concentração de ácidos graxos, apresenta grande potencial de cicatrização da pele quando incorporado a um sistema nanoparticulado – um jeito de envolver as substâncias ativas em "bolinhas” bem pequenas que protegem as moléculas importantes.
Nos testes in vitro, feitos com células colhidas de um ser vivo e multiplicadas em laboratório, observou-se que nessa formulação foram ativados genes para produção de elastina, principal proteína que dá elasticidade à pele, e o extrato da semente apresentou capacidade de atuar na regeneração tecidual. Ou seja, os experimentos apontaram para o potencial cosmético de diminuir a aparência de cicatrizes.
"Os resultados foram muito satisfatórios”, declara Geisa Barbalho, doutoranda em Ciências Farmacêuticas no LTMAC e uma das autoras do artigo Skin Regenerative Potential of Cupuaçu Seed Extract (Theobroma grandiflorum) (Potencial regeneração cutânea do extrato da semente de cupuaçu, na tradução livre para o português), recém-publicado na revista de alto impacto Pharmaceutics.
Geisa, que ingressou na UnB na graduação em Farmácia em 2011, estudou o tema durante o mestrado no mesmo laboratório, quando o objetivo era incorporar esse extrato a uma formulação que não fosse tóxica e pudesse ser aplicada na pele.
A solução encontrada foram nanocápsulas revestidas com quitosana, macromoléculas mucoadesivas que conseguem desestruturar o estrato córneo – camada mais externa da pele humana – e facilitar a passagem do fármaco nas outras camadas. "A mucoadesão também ajuda a manter a formulação por mais tempo em contato com a pele”, acrescenta a estudante.
Para serem utilizadas, as nanocápsulas poderiam ser incorporadas a formulações mais líquidas e aplicadas com spray para não precisar espalhar com a mão – útil no caso da pele queimada – ou ainda poderiam integrar formulação em gel.
As pesquisas foram conduzidas pelos três docentes coordenadores do LTMAC, Taís Gratieri, Guilherme Gelfuso e Marcílio Cunha Filho, e por mais dois pesquisadores, além de Geisa Barbalho. Todos constam como inventores no pedido de patente da Composição nanoestruturada contendo extrato de sementes de cupuaçu (Theobroma grandiflorum) e seu uso no tratamento tópico de queimaduras cutâneas.
Preparo da amostra de pele que será usada no experimento in vitro. Foto: Geisa Barbalho/LTMAC
Amenizar as cicatrizes oriundas de queimaduras não seria a única função observada dessas nanocápsulas. Segundo Taís Gratieri, professora do Departamento de Farmácia (FAR/UnB), coordenadora-fundadora do LTMAC e orientadora de Geisa desde a graduação, elas também demonstraram potencial para rejuvenescimento. "É necessário ter estudo clínico para afirmar, mas os estudos in vitro sugerem que [as nanocápsulas] possuem esse potencial”, afirma a docente.
Mesmo com a patente de inovação, Taís Gratieri ressalta que o grande objetivo dos pesquisadores do LTMAC é avançar na área de conhecimento e entender, principalmente, os fatores que afetam o desempenho de formulações tópicas, e não necessariamente chegar à formulação final do produto a ser comercializado. Este é o papel e o propósito da indústria.
"Nosso objetivo é entender os processos que tornam as formulações eficazes. A indústria tem pressa, normalmente não há essa avaliação comparativa, análises estatísticas, não publicam um artigo a cada formulação, senão vão demorar a ir para os testes clínicos [etapa subsequente aos testes in vitro] e a lançar o produto. Por outro lado, nós não fazemos testes clínicos. Então, as duas coisas se complementam”, ensina a professora.
Ela ressalta que após o registro da patente, pode haver interesse da indústria em desenvolver o produto em questão ou outros pesquisadores também podem se beneficiar dos conhecimentos descritos ali para desenvolver um medicamento novo.
VERSÁTIL – O grupo do Laboratório de Tecnologia de Medicamentos, Alimentos e Cosméticos da UnB atua em pelo menos quatro frentes: pesquisa, ensino, extensão e prestação de serviços. Esta última é voltada principalmente para as indústrias farmacêuticas, que procuram bastante para análise de estudos que verificam a permeação de substâncias na pele, além de treinamentos.
Em relação a ensino e pesquisa, em nove anos o LTMAC 27 formou mestres, 11 doutores e mais de 50 alunos de graduação. O trio de professores que fundaram e coordenam o espaço atualmente orienta outros 40 estudantes, considerando graduandos e pós-graduandos. E, nesse período, o laboratório somou 12 pedidos de patentes e cerca de 180 artigos publicados nacional e internacionalmente.
Quem vê esses números provavelmente não imagina que, até três anos atrás, o LTMAC não possuía instalações definitivas. Até 2017, os experimentos eram realizados em salas diversas com equipamentos emprestados, e naquele ano passou a funcionar em uma sala de aula da Faculdade de Ciências da Saúde (FS) compartilhada com um docente de outra área.
"Os primeiros alunos que orientei na UnB carregavam os reagentes e as pipetas numa bandeja de um lugar para outro. Cada dia faziam experimento em um lugar. Era muito cansativo e, sem dúvida, pouco producente. Mas foi o jeito que encontramos”, relembra Taís Gratieri.
O laboratório ganhou sua atual infraestrutura apenas em 2019, ao ser abrigado na Unidade de Laboratórios de Ensino de Graduação (Uleg) da FS, no campus Darcy Ribeiro. Só aí foi possível instalar todos os equipamentos que ainda não haviam sido acomodados na sala anterior.
RECONHECIMENTO – As pesquisas dos docentes do LTMAC têm lhes rendido reconhecimento internacional. Taís Gratieri e Guilherme Gelfuso figuram na lista dos 10 mil pesquisadores mais influentes da América Latina, conforme o ranking internacional Alper-Doger (AD) Scientific Index, publicado em outubro de 2021. Em dezembro do mesmo ano, Taís foi eleita membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e, em 2013, foi agraciada com o Prêmio para Mulheres na Ciência, da L'Oréal, em parceria com a Unesco e a ABC.
O LTMAC também já recebeu diversas menções honrosas e prêmios pelos trabalhos desenvolvidos, com destaque para o Prêmio UnB de Dissertação e Tese de 2015, que condecorou o egresso Fernando Pires de Sá com o título de Melhor Dissertação em Ciências Farmacêuticas, e o Prêmio Capes de Tese 2021, área Medicina II, que laureou a pesquisa da egressa Maíra Nunes Pereira.
O docente Guilherme Gelfuso, orientador do trabalho agraciado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Pessoal (Capes), pontua que esse estudo, dedicado ao tratamento tópico da hidradenite supurativa, uma doença de pele crônica inflamatória, contou com colaboração externa e já está protegido pelo processo de patente perante o Instituto Nacional de Propriedade Industrial.
Ele ressalta que o LTMAC tem colaboração constante de vários pesquisadores de outros laboratórios da própria UnB, assim como de outras universidades nacionais e internacionais.
"Certamente enriquecem demais o trabalho realizado por nós. Nosso grupo tenta ser bastante criterioso, os coordenadores do laboratório se reúnem constantemente com os alunos para sempre qualificarem sua pesquisa com opiniões conjuntas. As premiações são apenas consequência desse grande trabalho que tentamos fazer para obter boas pesquisas e formar bem os alunos de graduação e pós-graduação”, avalia.
Impressora de medicamentos 3D: técnica nova no ramo farmacêutico permite a total personalização de um remédio. Foto: Anastácia Vaz
INVESTIMENTO – A graduanda do curso de Farmácia Ana Luiza Lima do Nascimento, orientanda do professor Marcílio Cunha Filho, é exemplo desse compromisso com a formação de recursos humanos. Com bom desempenho acadêmico ao longo do curso, ela se prepara para dar um salto direto para o doutorado no processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Nanociência e Nanobiotecnologia da UnB – neste caso, o mestrado não é pré-requisito para concorrer.
Aos 23 anos, ela acumula experiências na Universidade como bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Extensão (Pibex), do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação (Pibiti) e do Programa de Iniciação Científica (ProIC). Todas as atuações ocorreram por meio do Laboratório de Tecnologia de Medicamentos, Alimentos e Cosméticos. "Eu amo a área acadêmica e de pesquisa! Então, pretendo seguir, sim, como pesquisadora”, afirma a estudante.
No LTMAC, ela trabalha com a linha de impressão de medicamentos 3D. Considerada de baixo custo, é uma técnica nova na área farmacêutica e que permite a total personalização de um remédio: é possível determinar tamanho, formato, dimensões, quantidades de princípio ativo utilizadas e maneira com que ele deve ser liberado quando em contato com o paciente.
"É uma técnica que apresenta inúmeros benefícios para o ramo farmacêutico, apesar de não ter sido desenvolvida para isso”, explica Ana Luiza. "É possível controlar a liberação do princípio ativo e produzir um medicamento com vários ativos juntos, coisas complicadas a partir de técnicas convencionais de produção.”
Dentro do laboratório, os dispositivos farmacêuticos primeiro são desenhados no computador para depois serem enviados para a impressora. Também é construído um filamento com princípio ativo e todos os ingredientes funcionais necessários, que será derretido pela máquina no processo de modelagem por fusão e deposição. O bico responsável pela extrusão (expulsão) desse material se movimenta e deposita camada por camada o material derretido até que o objeto tridimensional ganhe forma.
"Estamos acostumados com cápsulas, comprimidos, cremes, emulsões, soluções orais, mas os dispositivos seriam formas diferentes de administrar um medicamento. A partir da técnica 3D, nós conseguimos inseri-lo em absolutamente qualquer objeto, já que estamos construindo, imprimindo”, explana a graduanda.
EXTENSÃO – Ana Luiza também integra a iniciativa Covid - Colaboração pela Vida, projeto de extensão coordenado pela professora Lívia Barreto, dos Laboratórios Multidisciplinares de Tecnologias e Controle Microbiológico (Labtec) da Faculdade UnB Ceilândia, em colaboração com o LTMAC.
Nela, os estudantes auxiliam no desenvolvimento de produtos saneantes a serem distribuídos entre comunidades de rua, asilos e orfanatos do Distrito Federal para ajudar a evitar o contágio da covid-19.
Outra iniciativa recém-aprovada é a criação do podcast Fartec real, em que a professora Taís Gratieri coloca estudantes de graduação em contato com profissionais do mercado em conversas descontraídas sobre suas áreas de atuação.
"Vou pegar exemplos de produtos conhecidos e os farmacêuticos que estavam à frente para, em 20 minutos, falarem um pouco sobre o projeto, as dificuldades encontradas, como foi a carreira, o que um farmacêutico precisa saber. É para inspirar os alunos e eles terem uma ideia dos possíveis campos de atuação", esclarece a docente.