Escola Bilíngue de Taguatinga (EBT), pioneira no DF, se compromete com o objetivo de educar pessoas surdas para agirem e reagirem ao mundo por meio das línguas e linguagens. Foto: Anastácia Vaz
Texto: Bianca Mingote
O termo bilíngue está relacionado ao domínio de duas línguas. No caso da educação para surdos, refere-se ao ensino que é organizado em duas frentes: a da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e a do português escrito. Em 2021, a Lei nº 14.191 alterou a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996, trazendo disposições sobre a modalidade.
Uma das alterações da norma foi estabelecer como base do ensino no Brasil o "respeito à diversidade humana, linguística, cultural e identitária das pessoas surdas”. Embora a previsão legal seja nova, esses valores já norteavam o projeto Surdez, bilinguismo e inclusão nas escolas públicas do Distrito Federal: entre o dito, o pretendido e o feito, da Universidade de Brasília.
Desenvolvido no âmbito do Grupo de Estudos Críticos e Avançados em Linguagem (Gecal), do Instituto de Letras (IL), o projeto foi iniciado em 2016, analisando práticas educativas voltadas ao público surdo no Distrito Federal (DF), com ênfase na compreensão do empoderamento desse indivíduo em seu contexto multidiverso, ou seja, respeitando sua singularidade, linguagem e cultura.
Desde o início das atividades até 2019, pesquisadores liderados pelo professor do IL Kleber Aparecido da Silva analisaram o cotidiano de duas escolas públicas do DF: o Centro de Ensino Médio Elefante Branco, na Asa Sul, de ensino regular e inclusivo; e a Escola Bilíngue de Taguatinga (EBT), pioneira da modalidade na região. As experiências vivenciadas no projeto impactaram a visão do docente a respeito do bilinguismo. "Hoje entendo que uma escola de educação bilíngue para surdos deve estar comprometida com que o surdo se aproprie das línguas e das linguagens, e com que ele possa agir e reagir por meio delas”, conta o coordenador do Gecal.
PERCURSO
A inclusão e a capacidade de atendimento às necessidades da pessoa com deficiência no sistema de ensino são um desafio permanente nas políticas públicas e na prática cotidiana no Brasil. Se a LDB existe desde 1996, foi apenas em 2002 que o Brasil respaldou a Língua Brasileira de Sinais como forma de comunicação e expressão, por meio da Lei nº 10.436, sancionada em 24 de abril – data que veio a se tornar o Dia Nacional da Libras.
Tal reconhecimento foi o ponto de partida para uma jornada gradual trilhada nas últimas décadas. Em 2005, o Decreto nº 5.626 regulamentou aquelas disposições iniciais, estabelecendo mudanças na educação para garantir o acesso e a permanência de estudantes surdos no ensino regular.
A importância da presença de alunos surdos ou com outras deficiências nas classes comuns é validada por especialistas, reiterada por familiares e consta em documentos oficiais. O Ministério Público Federal divulgou, em 2004, a cartilha O acesso de estudantes com deficiência às escolas e classes comuns da rede regular, para compartilhar conceitos de inclusão e dar direcionamentos à prática.
Vale lembrar que no país não existe apenas esta modalidade de ensino a pessoas com deficiência. Há também o ensino especial e, para o caso das pessoas surdas, a perspectiva bilíngue, com Libras como primeira língua e português como segunda língua.
A preocupação central do projeto desenvolvido pelo Grupo de Estudos Críticos e Avançados em Linguagem (Gecal) da UnB é avaliar de que modo o ensino de Libras e de português para alunos surdos respeita e considera as particularidades de cada pessoa e de cada lugar.
"Nossa ideia era justamente compreender o que foi dito nos documentos, o que foi pretendido pelas escolas e o que realmente foi feito nesta escola para esse contexto específico”, detalha o professor Kleber da Silva. "Cada comunidade surda está inserida em um ambiente heterogêneo com demandas específicas em relação à linguagem. Por exemplo, a Libras falada em Brasília é diferente da falada em São Paulo – é a chamada variedade linguística. Esse projeto nos fez rever os alunos como seres importantes e interpretar a educação como ato político que vê a linguagem como meio para a pessoa agir e reagir na sociedade”, explana.
A pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF) e ganhou destaque. De 2018 a 2020, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) expandiu a pesquisa-ação para todo o Brasil, sob o título Educação bilíngue para surdos, escola e inclusão. Nesta fase, o projeto foi considerado pela Capes um dos melhores do país na área de direitos humanos e diversidades. Além de pesquisadores de iniciação científica, de mestrado e de pós-doutorado da UnB, participaram parceiros do Piauí, de Minas Gerais e de Santa Catarina.
Clissineide Caixeta é diretora da Escola Bilíngue de Taguatinga (EBT), uma das instituições analisadas pelo projeto do IL. Foto: Anastácia Vaz
O DITO, O PRETENDIDO E O FEITO
Durante os anos da pesquisa, foram encontradas lacunas no ensino bilíngue ofertado. Como a metodologia adotada para o estudo do Gecal/IL foi a pesquisa qualitativa de caráter etnográfico, que consiste na realização de trabalho de campo junto ao público-alvo, os problemas foram mapeados pelo grupo com base em participação em aulas e reuniões, entrevistas, oficinas e rodas de conversa com professores e alunos.
Ao contrário do que previa o Plano de Desenvolvimento da Educação de 2007, observou-se que a infraestrutura e os recursos didáticos não eram adequados. Apesar do Decreto nº 5.626/2005, que detalhou a perspectiva de formação de professores, tradutores, intérpretes de Libras e fonoaudiólogos, foi identificado desempenho deficitário dos profissionais. Alguns docentes das escolas pesquisadas não sabiam Libras e não existiam profissionais bilíngues para ministrar disciplinas como Geografia e História.
"As atividades pedagógicas eram realizadas na forma de sinais isolados ou alternados com a fala. Alguns professores não tinham uma vivência linguística e cultural propriamente dita na Língua Brasileira de Sinais”, observa o pesquisador Kleber da Silva.
Clissineide Caixeta é professora, tem especialização aplicada ao ensino de estudantes surdos e atua como diretora da Escola Bilíngue de Taguatinga (EBT), uma das instituições analisadas pelo projeto do IL. Quando as práticas locais foram observadas pelos pesquisadores, a linguagem oral era um recurso utilizado em sala de aula. Havia dificuldade em encontrar profissionais fluentes em Libras e algumas disciplinas eram ministradas com apoio de intérprete.
"Hoje isso não ocorre mais. A escola conta com um time de professores totalmente bilíngue, sendo que quatro profissionais são surdos", compara Clissineide. A EBT foi criada em 2013 e atende apenas surdos, deficientes auditivos e codas – filhos ouvintes de pais surdos. A escola oferta desde a educação infantil até o ensino de jovens e adultos. Em 2022, acolhe 109 estudantes.
Desde sua inauguração, a instituição tem evoluído a partir das necessidades que surgem ao longo da caminhada. "Nossos profissionais são muito estudiosos, estão sempre se atualizando e criando novas estratégias e metodologias para aperfeiçoar as condições de aprendizagem dos alunos”, completa a diretora.
Apesar do avanço no capital humano, a instituição ainda enfrenta problemas relacionados à infraestrutura, como a ausência de auditório, que na avaliação da diretora é um espaço importante em uma escola bilíngue por proporcionar mais interação social entre os alunos e a comunidade. O tamanho das salas de aula também não é adequado. Por serem pequenas, dificultam a distribuição das cadeiras em formato de U – que propicia melhor visibilidade da sinalização em Libras.
Há a expectativa de que, em breve, a instituição receba sua Sala de Recursos Multifuncionais – espaço com equipamentos de mobiliário e material didático-pedagógico que potencializam o desenvolvimento dos alunos com deficiência. A verba para os equipamentos já foi liberada pelo governo federal. Agora, a gestora aguarda liberação do espaço físico pela Secretaria de Educação. Também há previsão de a instituição receber cinco novas salas de aula pela Novacap, o processo está em fase de planejamento.
Favorecer a criação de uma rede de reflexões para a melhor implementação da educação bilíngue é um dos objetivos do trabalho do Gecal. Segundo o professor Kleber da Silva, a atuação dos pesquisadores junto a profissionais e estudantes possibilitou que as escolas repensassem sua própria realidade e estabelecessem caminhos para reduzir a distância entre o que existe e o que está previsto em documentações.
Propostas de revisões de conteúdos expressos na legislação também estão entre os resultados práticos do projeto. Enquanto o Decreto nº 5.626/2005 estabeleceu a graduação como requisito de formação para professores de educação infantil, ensino básico e superior, os pesquisadores recomendam a formação continuada desses profissionais, para que se mantenham em constante evolução.
SEMENTES
O Gecal foi idealizado em 2012 e certificado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em 2014. Docentes da educação básica e superior e estudantes da graduação e pós-graduação integram a equipe do Gecal. Desde sua criação, o grupo realiza eventos como a Jornada Internacional de Linguística Aplicada Crítica e a Conferência Internacional em Estudos da Linguagem.
Para divulgar as produções dos pesquisadores, o Gecal coordena a elaboração de séries e de dossiês temáticos em publicações na área de linguagens do Brasil e do exterior. A iniciativa segue espalhando sementes com a expectativa de, no futuro, ver brotar frutos como políticas públicas elaboradas com a participação de pessoas surdas e sensíveis às questões culturais específicas desse grupo.
De 2022 a 2026, o Gecal investigará experiências e levantará discussões relacionadas às práticas bilíngues em escolas do Brasil e de outros países da América do Sul e do sul global. A ideia é refletir sobre necessidades sociais, educacionais e linguísticas e sobre determinantes históricos e culturais que influenciam na educação bilíngue dos surdos.