Preocupado com o esgotamento causado pelo uso de telas como recurso de comunicação durante a pandemia de covid-19, o docente Gabriele Cornelli enxergou como saída didática a produção de podcasts – iniciativa que resultou no Podcast Archai. Foto: Anastacia Vaz/Secom UnB
Texto: Isabella Almeida
Repentinamente privados do espaço da sala física, quadro, canetão e conversa com olhos nos olhos, a alternativa encontrada por muitos professores, frente à pandemia de covid-19, foi recorrer à tecnologia para aumentar o interesse dos estudantes nos conteúdos ministrados. Foi com essa preocupação didática que o docente Gabriele Cornelli, do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (FIL/UnB), inovou na condução da disciplina História da Filosofia Antiga. "Me veio a ideia de preparar três ou quatro episódios de podcast para não matar os alunos de tédio com minhas aulas ao vivo pelo computador", brinca.
A ideia da pequena série, lançada em agosto de 2020, deu lugar a uma robusta produção que já passou a marca de 50 episódios. Lançados às sextas-feiras pela manhã, os podcast abordam personagens mitológicos ou históricos e sua contribuição para o pensamento ocidental. A inovação não só cativou os alunos da disciplina, como tem conquistado ouvintes mundo afora: o Podcast Archai já soma mais de 20 mil acessos.
O sucesso se dá pelo formato descontraído da produção e pelas temáticas e entrevistas que despertam a curiosidade mesmo de quem nunca se interessou por Filosofia Antiga. "Para nossa grande surpresa, a comunidade tem demonstrado muito interesse. Aliás, mais do que isso: carinho mesmo com o projeto", compartilha Cornelli. Segundo o professor, o perfil predominante da audiência é de alunos de graduação, docentes de diversas universidades de países de Língua Portuguesa, seguido pelo público não acadêmico.
Se depender de sua crescente popularidade e do interesse de estudiosos da área, serão produzidos, no mínimo, mais 50 novos episódios. "Tem colega que entra em contato e se convidar para falar. Estamos achando ótimo!", comemora Cornelli.
COMO FUNCIONA – A cada episódio, cuja duração é de até 60 minutos, um convidado discorre sobre a personagem da vez e sua importância para o pensamento ocidental. Antes de abordar da temática, os convidados compartilham histórias e confissões sobre a trajetória acadêmica, casos divertidos de vocações improváveis para os estudos clássicos, percursos pessoais e intelectuais com os quais muitos classistas e ouvintes acabam se identificando. Diferentemente dos livros e artigos filosóficos, a linguagem e o conteúdo são abordados de forma pouco complexa, muito dinâmica e sempre dispondo curiosidades que despertam a atenção do público.
É o caso do episódio 31, dedicado à Afrodite. Muito conhecida como a deusa do amor, a personagem é na verdade a deusa do sexo, como afirma Giuliana Ragusa, professora de Língua e Literatura Grega Antiga do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP).
"Seu mundo compreende tudo relacionado ao enlace sexual, seja como elemento de procriação da espécie ou como prática em suas possibilidades eróticas. No universo grego, há a concepção de que o desejo sexual é sempre uma força externa: o poder de Afrodite. Não por acaso ela é a mais bela entre as deusas gregas, a única chamada de áurea – dourada como o ouro", conta Ragusa sobre a deusa relacionada à beleza, à sedução e ao erótico.
O episódio 22 ilustra a diversidade de personagens ao apresentar Jesus de Nazaré, separando sua figura histórica do aspecto religioso. O podcast aponta Jesus como um homem que obteve sucesso em seu movimento e que deve ser pesquisado pela ciência, embasando-se em estudos que começaram no século XVIII e se desenvolvem até hoje.
"É só no final século XIII que começam a aparecer trabalhos sobre Jesus histórico, sobre a busca dessa personagem, afinal, em pleno século XII se vive a ideia de que todo objeto só existe na medida em que ele é passível de comprovação. Como a fé não é argumento para sustentar nenhum objeto, pesquisadores começam a se perguntar quem era Jesus histórico", conta André Chevitarese, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Para conhecer a variedade de conteúdos já publicados, basta acessar o podcast em aplicativos como Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts, Breaker, Radiopublic. A produção também está no Youtube, basta procurar por Archai UNESCO Chair - Universidade de Brasília.
NOS BASTIDORES – Para colocar a ideia em prática, o docente Gabriele Cornelli recorreu à ajuda do amigo radialista Rodrigo Resende, da Rádio Senado. A execução reuniu pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília (PPGµ/UnB) em parceria com a Cátedra Unesco Archai sobre as Origens Plurais do Pensamento Ocidental.
Entre os colaboradores está a doutoranda do PPGµ Fernanda Pio, participando desde o primeiro episódio, quando atuava nos bastidores de gravação e edição dos arquivos. Ela estreou como apresentadora no episódio oito, e as atividades do podcast acabaram tornando-se um hobby. Além da vontade de produzir algo de qualidade, seu apego ao produto encontra lugar no afeto presente nas falas dos convidados.
Apresentadora do podcast, a doutoranda Fernanda Pio passou a apreciar mais sua trajetória acadêmica após conhecer os relatos dos pesquisadores entrevistados no programa. Foto: Gabriel Saraiva
"Gravamos com a professora Zélia Cardoso, da USP, poucos meses antes de seu falecimento. Foi um belíssimo episódio sobre Propércio, e pudemos eternizar fragmentos muito íntimos de sua trajetória pessoal e acadêmica", relembra Fernanda Pio, emocionada, sobre a experiência eternizada no episódio 26. Além de criar conteúdo acessível ao público seja de leigos ou estudiosos, ela enfatiza que o podcast "valoriza de maneira única os pesquisadores e suas jornadas".
Seu episódio favorito é o 15, sobre Dike, deusa da mitologia grega que personifica a justiça, apresentada por José Antônio Alves Torrano, docente de Letras Clássicas da USP. "Me identifiquei demais com o carinho que ele tem pelos professores que marcaram sua trajetória e também com relato sobre o papel que a intuição exerce nas suas escolhas de carreira", revela Fernanda Pio.
O gosto pelo projeto é tão grande que ela não pensa em encerrar sua participação. "Ainda que eu finalize o doutorado e vá para outra instituição, gostaria de continuar no programa. Talvez minha participação se encerre junto da trajetória do podcast, mas não pensamos em parar tão cedo."
Participar da iniciativa, que nasceu pequena e ganhou relevância, proporcionou à doutoranda um novo olhar para a vida profissional. "O podcast me fez perceber que a carreira da maioria dos pesquisadores não é linear ou perfeita. Apreciar a trajetória dessas pessoas me fez olhar para minha história com mais respeito e consideração".
A experiência deixou claro que o conhecimento acadêmico deve dividir espaço com os ensinamentos da vida. "Fiz graduação em Direito e fui me interessar por filosofia muito ‘tarde’, fazendo com que eu me sentisse muitas vezes uma impostora [na área]. Com as entrevistas, percebi que a regra é um caminho cheio de curvas, renúncias, aventuras e situações inesperadas. Essas são as histórias mais interessantes! Hoje me sinto mais confortável no desenvolvimento da minha pesquisa e na interação com outros colegas e professores".
A equipe do Archai soma reúne Lorena Ferreira, doutoranda da UnB; Beatriz de Paoli, docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e Flávia Amaral, pós-doutoranda da Universidade de Toronto, no Canadá. Na pós-produção estão Arthur Sobreira, mestrando do PPGµ, e Ariadne Coelho, doutoranda da Universidade de Coimbra, em Portugal.
A equipe do Archai reúne Lorena Ferreira, doutoranda da UnB; Beatriz de Paoli, docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e Flávia Amaral, pós-doutoranda da Universidade de Toronto, no Canadá. Na pós-produção estão Arthur Sobreira, mestrando do PPGµ, e Ariadne Coelho, doutoranda da Universidade de Coimbra, em Portugal.
OUVINTES TAMBÉM TÊM VOZ – O engajamento de ouvintes com o podcast já rendeu, inclusive, participação no programa. É o caso de Rodrigo Tadeu Gonçalves, professor de Língua e Literatura Latina na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba. Ele encontrou refúgio na produção quando começou o isolamento social.
"Procurava por assuntos mais leves, que pudessem me fazer bem. Considero que o Podcast Archai seja desse tipo, por conta da abrangência dos temas e do modo como são tratados. Não é aquele conteúdo estritamente acadêmico", opina o professor. Gonçalves compartilha que o produto conseguiu conectá-lo com colegas que estavam em isolamento ou que residem em cidades mais distantes, com os quais não costumava manter contato frequente.
O docente da UFPR destaca, ainda, o acolhimento da equipe do Archai. "Participei como convidado falando sobre Lucrécio, e percebi um clima de familiaridade, reconhecimento e acolhimento. A equipe trabalha muito bem e nos deixa à vontade como ouvintes e como participantes", elogia o pesquisador sobre a experiência no episódio 11.
Professora de Língua e Literatura Grega na USP, Adriane Duarte é ouvinte assídua do programa e teve "a sorte de ser convidada para participar do segundo episódio e conhecer a proposta e a dinâmica do programa" ainda em sua fase embrionária. Em uma conversa descontraída, ela conta como o fabulista grego Esopo se encaixou em sua trajetória de pesquisa, compartilha suas memórias afetivas, além de curiosidades, exemplos e morais de histórias do escritor.
Para Duarte, "o podcast cumpriu um papel importantíssimo durante a fase mais aguda da pandemia, ao conectar quem estava em isolamento, sem a possibilidade de encontros presenciais". Ela acrescenta que o programa contribui para valorizar estudiosos da área ao "mapear e registrar a rede de pesquisas e as atividades dos classicistas brasileiros, dando um rosto a eles."
Para a alegria de seus entusiastas e para o bem da divulgação científica no país, o Podcast Archai segue em rota de crescimento. Em 2022, a busca é por investir em recursos tecnológicos que aprimorem a qualidade técnica do produto.
Para Cornelli, inovações como o Archai são um retrato da relevância e do compromisso social da Universidade. "Creio que um projeto como este tem o rosto dos 60 anos da UnB: tradição e inovação, passado e futuro, a serviço de um conhecimento que possa transformar a sociedade." O docente se alegra por "a cada semana ser surpreendido com ouvintes que não imaginávamos" e torce para "venham mais boas surpresas".
Para acompanhar as produções, acesse o site: www.anchor.fm/podcast-archai.
A CÁTEDRA – A Cátedra UNESCO Archai sobre as Origens Plurais do Pensamento Ocidental é resultado de uma parceria entre a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a UnB. A Cátedra é quem publica o Podcast e a revista científica Archai, conceituada na área de Filosofia e de Estudos Clássicos no Brasil.
A Cátedra já organizou mais de 15 seminários internacionais e uma série de simpósios. É responsável por coleções de livros e pelo projeto de extensão Aesopica - As fábulas de Esopo: filosofia, ética e sabedoria popular. A parceria entre a Unesco e a UnB reflete o engajamento da Universidade com a comunidade internacional. Informações e produções da Cátedra estão disponíveis no site: http://www.archai.unb.br