Professor da UnB aposentado Erasto Fortes compartilha histórias da redemocratização, como quando presenciou verdadeira revolução na educação do DF, além de lembrar dos muitos desafios que enfrentou como educador
Foto: Rafael Happke/UFSM
O novo projeto totalmente on-line da revista Darcy traz, a cada semana, matérias inéditas como parte das comemorações do aniversário da UnB e de Brasília, além de série sobre o projeto de extensão Vivência Amazônica. Educação pública e prática democrática é o quarto texto do novo projeto.
Texto Vanessa Vieira
Com apenas quatro anos de sua inauguração, em 1964, a capital federal teve sua história marcada pelo início do regime militar. A Universidade de Brasília ainda não contava dois anos de vida. A partir daí, seguiram-se duas décadas de autoritarismo, um Congresso Nacional dissolvido, liberdades civis extinguidas e sucessivos governos com representantes das Forças Armadas.
Para resgatar um pouco desse período marcante da história da UnB e de Brasília e também para falar da retomada democrática, convidamos o ex-reitor da UnB Antônio Ibañez Ruiz e o docente aposentado da Faculdade de Educação Erasto Fortes. Eles compartilham com os leitores da revista Darcy suas memórias e suas vivências marcantes desta época na capital e na Universidade.
O primeiro depoimento é do professor Fortes. Ele lembra de seu envolvimento com Ceilândia e como o período de redemocratização refletiu em mudanças profundas no governo de Brasília e na UnB. Foi quando o DF viveu uma verdadeira revolução em sua educação, com eleições diretas para diretores das escolas públicas.
No contexto da democratização, Erasto Fortes exerceu o cargo de diretor de um complexo escolar em Ceilândia, equivalente hoje a uma Regional de Ensino. “Foi um momento de dedicação quase exclusiva nesse campo. Desenvolvemos um projeto de formação continuada com os diretores eleitos, com reflexões semanais sobre o papel da escola naquela comunidade e naquele momento de transição democrática”, relembra.
Na próxima semana, publicaremos o depoimento do professor Ibañez.
Transformações democráticas
“A primeira marca que a cidade deixou em mim foi a experiência de professor em escola pública. Foi a sedução pela educação pública”. O relato é do docente aposentado da Faculdade de Educação da UnB Erasto Fortes. Natural de Niterói, Rio de Janeiro, ele desembarcou em Brasília em 1982, após três décadas residindo na cidade fluminense. Na bagagem, a experiência de 13 anos como professor de matemática em uma escola privada confessional, que ganharia novos significados.
Ceilândia, a maior região administrativa de Brasília à época, passou a ser seu novo endereço de trabalho. A oportunidade veio após aprovação em concurso público para a então Fundação Educacional do Distrito Federal (DF), hoje Secretaria de Estado de Educação (SEEDF). “Foi meu primeiro contato com essa realidade mais sofrida. Ceilândia tinha todo tipo de problema social e econômico. Isso mudou minha vida completamente. Passei a ter uma visão política da sociedade que antes não tinha. Passei a lutar pela educação pública de qualidade. Me filiei a um partido político porque entendi que a estrutura social me exigia uma participação mais ativa”, compartilha.
Ceilândia surgiu da Campanha de Erradicação de Invasões – daí o acrônimo CEI. Este foi o primeiro projeto para erradicar favelas em Brasília, removendo migrantes e operários que ocupavam espaços no Plano Piloto e proximidades. As remoções começaram em 1971, quando cerca de 80 mil moradores foram transferidos para o novo espaço. “Apesar da promessa de receber um lote, as pessoas já chegaram ali com a marca da marginalização por terem sido tiradas de seu lugar”, analisa Fortes.
Paralelamente ao seu trabalho como docente, veio a aprovação no mestrado na Faculdade de Educação (FE) da UnB. Foi quando ele testemunhou, de 1982 a 1985, o processo de intervenção militar na UnB. “A UnB sofreu muito com o golpe militar. Demitia-se e contratava-se professores a bel prazer dos administradores neste período. Houve perseguição a professores. A FE sempre foi um lugar de luta pela democracia e, por isso, vi de perto a resistência acontecendo na Universidade”.
O ano de conclusão de seu mestrado foi também ímpar graças à “experiência de redemocratização do país, com o primeiro governo civil após 21 anos de ditadura militar”, relembra.
A transição para o governo civil acontecia após o Congresso Nacional sufocar o pedido popular por Diretas Já e, por eleição indireta, escolher Tancredo Neves e José Sarney para presidência e vice-presidência do país, respectivamente. A morte repentina de Tancredo, levou o vice Sarney a assumir a cadeira presidencial, inaugurando a chamada Nova República.
“Foi um momento absolutamente marcante, refletindo em mudanças no governo de Brasília e na Universidade”, lembra o educador.
Revolução na educação
José Sarney indicou para o Distrito Federal o governador José Aparecido de Oliveira. Este, por sua vez, indicou o jornalista Pompeu de Sousa como secretário de Educação e Cultura do DF.
“Pompeu de Sousa foi um ícone da resistência democrática no campo do jornalismo. Seu nome para a área da Educação foi de uma esperança enorme para nós, gerou muito entusiasmo. Ele indicou como diretor da pasta o ex-sindicalista e professor Fábio Bruno, que fez uma verdadeira revolução na educação do DF. Foi quando houve a primeira eleição para diretores das escolas públicas aqui, em 1985”, resgata Fortes.
Segundo o professor, por meio da eleição para diretores escolares, a população pôde expressar seu desejo mais amplo de participação política. “O DF ainda não tinha eleição para governador e deputados. Isso só veio depois da Constituinte de 1988. E, então, as escolas passaram a ter eleição direta. Foi um ‘fuá’ na cidade. Os jornais anunciavam: 'A cidade que foi caçada em sua cidadania eleitoral terá sua primeira experiência dentro das escolas'.”
No contexto da democratização, Erasto Fortes foi eleito diretor de um complexo escolar, equivalente hoje a uma Regional de Ensino. “O complexo abrangia 23 escolas de Ceilândia. Uma delas era a Escola Normal, destinada a formação de professores. Foi um momento de dedicação quase exclusiva nesse campo. Desenvolvemos um projeto de formação continuada com os diretores eleitos, com reflexões semanais sobre o papel da escola naquela comunidade e naquele momento de transição democrática”.
A eleição foi um avanço, mas a experiência democrática ainda se fortalecia. Poucos meses se passaram e diversos diretores eleitos foram exonerados da função sem qualquer consulta popular. O acontecimento foi um novo marco na trajetória pessoal de Fortes.
Houve uma iniciativa nacional chamada Projeto Irmãozinho. Consistia na distribuição de um saco com ração alimentar para as crianças que ainda não tinham idade escolar e eram irmãos de estudantes matriculados. Era um tipo de arroz com determinado conteúdo nutricional.
“Entretanto, a ação visava aparelhamento da coisa pública, formando um cadastro dos beneficiados. Alguns diretores recusaram-se a implantar esse projeto. Um deles foi pego como exemplo e demitido por telefone diretamente pelo secretário de Educação. Eu tinha por competência administrativa nomear outro diretor no lugar. Me recusei em defesa do diretor eleito. Tudo foi noticiado na imprensa e a população se mobilizou ao nosso lado. Poucos meses depois, também fui demitido. Queriam abafar a situação”, conta.
Projeto pioneiro
Com a demissão, Fortes voltou à lecionar matemática na cidade. Em 1988, ingressou na UnB como professor convidado. Três anos depois, foi aprovado em concurso público como professor permanente. Foi diretor da Faculdade de Educação da UnB entre 2002 e 2006. Seu último vínculo público foi como conselheiro do Conselho Nacional de Educação, vivência para ele “muito honrosa por proporcionar uma visão mais ampla da educação no país”.
Hoje, o docente continua a atuar em prol da educação pública. “Compreendo o papel da educação privada como uma opção. Mas o Estado não pode desertar da sua função de oferecer a educação pública a todos. Do mais pobre ao mais rico, a escola tem que ser igual para todos.”
Sobre a capital que o abriga há quase quatro décadas, ele declara, sem titubear: “O que mais me entusiasmava e continua a entusiasmar é que o plano urbanístico, o plano piloto da cidade, tal como foi traçado por Lúcio Costa, incorporou a educação pública”.
Sua fala se refere ao Plano de Construções Escolares de Brasília, elaborado por Anísio Teixeira e incorporado ao projeto arquitetônico de Lúcio Costa. A ideia original inclui Jardins de Infância, Escolas-Classe, Escolas-Parque e Centros de Educação Média distribuídos nas quadras do Plano Piloto de tal forma a atender às necessidades diárias dos moradores, contemplando o conceito de unidades de vizinhança. A Universidade de Brasília faz parte do projeto, com a missão de ofertar ensino superior.
Fortes lamenta que muita coisa tenha ficado apenas no papel. É o caso das Escolas-Parques, pensadas para funcionar no contraturno escolar oferecendo aulas de esportes, artes, entre outras atividades. Das 28 unidades propostas por Anísio Teixeira, apenas sete funcionam atualmente. “Apesar disso, o ideal de uma educação pública integral e emancipatória segue como inspiração”, garante.
O educador enfatiza que o sistema educacional pensado por Anísio Teixeira para a cidade propunha a integração entre educação básica e a universidade. “Tive o privilégio de contribuir nesses dois níveis educacionais. A vida foi generosa comigo ao me proporcionar vir para a cidade e ter me encontrado com essa proposta de sistema público de educação”.