Na terceira e última reportagem da série, repórter da Darcy acompanha projeto de extensão à Amazônia, em Santo Ezequiel Moreno (PA), e narra sucesso de iniciativa solidária de arrecadação de fundos oriundos do manejo do açaí. Não perca também o terceiro podcast que será lançado aqui nesta quarta-feira (5)
O novo projeto totalmente on-line da revista Darcy traz, a cada semana, matérias inéditas como parte das comemorações do aniversário da UnB e de Brasília, além de série sobre o projeto de extensão Vivência Amazônica. Viagem a uma Amazônia mobilizada é o nono texto do novo projeto.
Texto Serena Veloso
Um sussurro invade o alojamento feminino do Centro Tagaste, na Prelazia do Marajó, situada no município de Breves, no Pará: “Pessoal, hora de acordar”, diz uma estudante. É cedo e, pouco a pouco, corpos sonolentos deslizam das redes e se metem em blusas verdes com a logo do Núcleo de Estudos Amazônicos do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Neaz/Ceam/UnB) – quase um uniforme da equipe. Minutos depois, uma aluna avisa aos responsáveis pela comissão de alimentação que estaria na cozinha para cuidar do café da manhã.
O professor Manoel de Andrade, coordenador do Neaz, orienta sobre os mantimentos a serem levados ao próximo destino: “Precisaremos de um kit de alimentos. É bom selecionar algumas frutas”. Os preparativos são para embarcarem pelo rio Parauaú rumo à vila de Santo Ezequiel Moreno, no município de Portel (PA). Na comunidade, vão conhecer experiência exitosa de articulação social por povos ribeirinhos da Amazônia.
A viagem é mais um itinerário realizado durante a quarta edição do projeto de extensão Vivência Amazônica, vinculado à disciplina Tópicos Especiais sobre a Amazônia e coordenado pelo Neaz. O foco da viagem de estudos é aproximar a comunidade acadêmica da realidade dos povo que habitam a maior floresta tropical do mundo.
A expedição durou 21 dias em dezembro de 2019. Estudantes, docentes e técnicos administrativos da UnB partiram para uma jornada para perceber que “existe gente na Amazônia e que esses povos sobrevivem em lógica diferente da existente na cidade, com luta e resistência, porque são excluídos”, nas palavras da professora Enaile Iadanza, ligada ao (Neaz). Revista Darcy e UnBTV acompanharam a jornada.
Valor do açaí
A viagem de barco de quase quatro horas de Breves até Santo Ezequiel Moreno permite descanso em redes e um pouco de diversão. Funk e carimbó (som típico da região) embalam a garotada, que contempla os tempos prosaicos da vida ribeirinha ao balanço das águas. A demorada pausa para almoço na cidade de Portel retarda o trajeto, concluído pouco antes do pôr do sol.
Horas depois, cessam os ruídos dos motores do barco, parado em meio à vastidão das águas de outro rio, o Acutipereira. A impossibilidade de navegar até a comunidade ribeirinha com a grande embarcação pede reforço. Parte da equipe continua o trajeto numa pequena lancha rápida. A outra parte aguarda a chegada de um barco de madeira de menor porte, completamente lotado. Em alguns minutos, palafitas no horizonte anunciam o destino final.
Recebidos com alegria, estudantes se misturam às crianças para um mergulho no rio, um dos passatempos dos ribeirinhos. O líder comunitário Teófilo Gomes aguarda os aventureiros para compartilhar o sucesso alcançado com um projeto solidário de arrecadação de fundos oriundos do manejo de açaí. Ele é também coordenador do Centro de Referência em Manejo de Açaizais Nativos do Marajó, o Manejaí, iniciativa voltada à aplicação de técnicas de mínimo impacto para obtenção do fruto.
Fundado em 2003, Santo Ezequiel Moreno é parte do Assentamento Agroextrativista Acutipereira, nome que batiza o rio da região. Como em outras comunidades próximas, há carência em quesitos como saneamento básico e educação. O rio está contaminado por rejeitos das madeireiras. Ali, sinal de celular e de internet são limitados.
O sustento das 38 famílias residentes vem do comércio do açaí – carro chefe da região –, de pescados e da agricultura familiar. Abundante no território, o fruto roxo era explorado sem qualquer planejamento. Ao perceberem o potencial econômico do produto, os moradores encontraram alternativa para suprir suas demandas sociais. Assim surgiu a ideia de destinar parte do recurso oriundo da produção do açaí para reinvestimento em obras na comunidade.
O fundo solidário do açaí existe desde 2010. Inicialmente, a captação era de um real por rasa vendida do fruto – cada rasa corresponde a 28 quilos. Hoje, o valor aumentou para dois reais por rasa. Com a verba angariada, já foram construídos pontes, poço artesiano e um centro comunitário para abrigar as reuniões dos moradores. Os recursos contribuíram ainda na produção agrícola local, em parte destinada à merenda da única escola da vila.
Teófilo orgulha-se da ideia, premiada pela Caixa Econômica Federal no quesito boas práticas. “A gente não se espelhou em nenhum fundo e em nenhuma comunidade que tivesse essa tecnologia. Ele foi criado pela lei da sobrevivência”, afirma.
Mesmo constatada a desassistência do Estado à comunidade, a capacidade de mobilização das famílias para suprir tal lacuna impressiona os estudantes. Militante do movimento negro, Jefferson Demétrio, estudante do curso de Saúde Coletiva da UnB, sabe bem o que é se envolver de corpo e alma em uma causa transformadora. “Quanto mais articuladas e organizadas, mais força as comunidades têm para fazer os seus enfrentamentos. A galera aqui é muito bem organizada, tem o seu fundo próprio e consegue, inclusive, trazer bens coletivos para a comunidade”, elogia, sobre a iniciativa.
Gente que inspira
Pontes de madeira guiam os universitários comunidade adentro. Os olhares exploram cada centímetro da floresta fechada, com açaizeiros e árvores amazônicas grandiosas, que tomam conta da paisagem, à medida que as pequenas casas somem de vista. Logo é possível observar parte da estrutura do Centro de Referência em Manejo de Açaizais Nativos do Marajó.
Instalado a partir de parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Manejaí incentiva a produção sustentável do açaí em região de várzea, com o estabelecimento de proporção adequada entre açaizeiros e outras espécies florestais na mesma área. Os benefícios alcançados com o método são muitos. Enquanto um hectare não manejado dos açaizeiros produz de uma a duas toneladas do fruto, com o manejo de mínimo impacto espera-se conseguir mais que o dobro do quantitativo: de cinco a seis toneladas.
“A partir do manejo, melhoramos a produtividade e reduzimos o esforço físico dos trabalhadores”, menciona o coordenador do Manejaí, Teófilo Gomes,. Ele garante que houve melhorias na qualidade do produto local, totalmente orgânico. “Tudo isso é a valorização do recurso que a gente tem: a floresta em pé. Vale muito mais do que derrubada”, reconhece, sobre a importância da exploração sustentável.
Reunidos no centro comunitário da vila, os acadêmicos anseiam por mais detalhes sobre as conquistas daquela população. Mesmo com o semblante cansado pela jornada exaustiva, o estudante Pedro Saliba se entusiasma diante da partilha enriquecedora. Esse e outros encontros proporcionados pela Vivência o fizeram perceber que há muito a se aprender com as comunidades amazônicas. “De cada lugar que saio, penso: como eles conseguem fazer isso mesmo com tudo contra eles?”, reflete Pedro.
As percepções sobre a força dos ribeirinhos também evocaram no estudante o sentimento sobre o potencial individual em transformar a realidade de todos. “É sair dessa noção de caixinha, de olhar só para o eu, e começar a olhar para o externo, para quem está do seu lado, com um olhar amoroso do que posso fazer para deixar a vida do outro mais confortável”, analisa Pedro.
Era a penúltima noite à beira-rio antes de retomarem aos estreitos assentos do ônibus para percorrer mais alguns milhares de quilômetros pelo território amazônico. No caminho, comunidades indígenas, camponeses sem-terra e retireiros os esperam para outras oportunidades de intercâmbio de saberes. Até a volta para casa, a expectativa é grande pelo encontro com novas facetas do Brasil profundo.
Novas percepções
Para quem vem de terras estrangeiras, desnudar a vida no território amazônico é descobrir a diversidade dos povos latino-americanos. Um dos motivos que fizeram Karin Pereira, aluna da Universidade de Buenos Aires, na Argentina, optar pelo intercâmbio no curso de Ciências Ambientais da UnB foi a possibilidade de fazer parte da Vivência.
A moça, de cabelos longos e sorriso evidente, só não esperava ser tão impactada pelos relatos dos povos da floresta. “São comunidades com histórias de luta, organizadas e que têm bandeiras e muita energia para mudar a realidade”, afirma.
A imersão em contextos sociais e ambientais tão particulares contribui para transformar a visão sobre a Amazônia. Graduanda em Ciências Ambientais na UnB, Larissa Machado está em sua terceira participação na Vivência e compartilha da percepção. A veterana conta que cada edição da viagem é única. Desta vez, sentiu-se instigada a saber mais sobre os povos amazônicos que vivem à beira-rio.
Para ela, a expedição redireciona o olhar genérico a uma perspectiva mais aprofundada sobre os prejuízos da degradação do bioma e o que isso representa para as populações afetadas. “Significa que pessoas estão perdendo o seu espaço de sustento e de coleta de recursos; que elas estão sendo prejudicadas e envenenadas por agrotóxicos ou mesmo pelo mercúrio e outras toxinas advindas da exploração mineral; que estão sendo mortas por conflitos de terra e pela necessidade da expansão agrícola”, expõe.
Participar da Vivência Amazônica oportuniza aos universitários o contato com realidades desconhecidas do maior bioma brasileiro. A experiência não só enriquece a formação acadêmica, mas possibilita a transformação enquanto cidadãos para se engajarem em causas que contribuam para a construção de um mundo melhor.
>>Não perca mais um podcast da série Amazônia Além da Floresta, que traz mais detalhes da experiência vivida por estudantes, docentes e técnicos da UnB durante as atividades da quarta edição da Vivência Amazônica.