Reportagem

 A UnB guiou vida e obra de músicos, atores, diretores de teatro, cineastas, artistas visuais, escritores... No ano em que Brasília comemora 60 anos e a UnB, 58, apresentamos histórias cheias de inspiração de artistas com sua Universidade

 

O novo projeto totalmente on-line da revista Darcy traz, a cada semana, reportagens inéditas como parte das comemorações do aniversário da UnB e de Brasília, além de série de matérias sobre o projeto de extensão Vivência Amazônica. Musa inspiradora é a matéria que inaugura o novo projeto.

 

Texto Robson G. Rodrigues

 

Ambiente acolhedor, livre e plural. Foi assim que a Universidade de Brasília foi pensada por Darcy Ribeiro. E foi assim que marcou vida e carreira de muitos artistas que passaram por aqui. Esta influência se manifesta em incontáveis trabalhos que se destacaram na cidade e fora dela em diferentes áreas: música, teatro, cinema, televisão, artes visuais, entre outras. São trabalhos que espalham inspiração e projetam a jovem sexagenária cidade no mapa nacional de produções artísticas. Para mostrar um pouco dessa influência, a Revista Darcy conversou com alguns desses artistas. Para cada um, a experiência universitária deu um impulso diferente. A reportagem procurou dar uma amostra dessa variedade de sementes germinadas.

 

 

O paraibano Vladimir Carvalho, 85 anos, é um dos principais documentaristas do Brasil. Grande parte do sucesso e da satisfação pessoal na carreira ele credita à Brasília e à UnB, onde lecionou na Faculdade de Comunicação por cerca de 30 anos. “Brasília e a Universidade se tornaram a coisa de maior significação em minha vida. Eu não existiria hoje sem a UnB, lugar de sabedoria e de nobre convivência. Sou muito orgulhoso em ser professor numa das melhores universidades da América Latina”, celebra.

 

O cineasta chegou à capital na década de 1960 para participar do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro com o filme A Bolandeira (1969). Aqui, foi convidado pelo também cineasta e professor Fernando Duarte (com quem havia colaborado no célebre Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, cujas gravações foram interrompidas em 1964 pela ditadura militar) para dar aula na UnB por algumas semanas. Resistiu no início, mas acabou aceitando o convite.

 

“O contrato de dois meses virou três. Depois, um ano. Agora faz meio século que estou aqui e não me arrependo. Amo a UnB. Me apaixonei por Brasília, me encantei com o cerrado”, conta, alegre, sobre a cidade que a princípio lhe pareceu burocrática, sem vida, mas que não demorou a abraçar. À época, a felicidade durou pouco, porque o curso de Cinema foi desfeito pelos militares. Vladimir foi um dos responsáveis por revitalizá-lo no início dos anos 1970. O curso formou gerações de profissionais.

"Brasília e a Universidade se tornaram a coisa de maior significação em minha vida. Eu não existiria hoje sem a UnB, lugar de sabedoria e de nobre convivência", avalia o cineasta Vladimir Carvalho. Foto: Maíra Moraes

 

A universidade até virou tema de alguns de seus filmes. No premiado longa-metragem Barra 68 (2000), o cineasta relembra as investidas de militares contra alunos e professores da UnB. Para ele, a cidade é fonte profunda de inspiração. “Brasília é uma caixa de ressonância de toda problemática brasileira. É o centro das decisões do país. Para um documentarista, é um prato cheio, posso desenvolver tudo aqui”, explica o professor emérito da UnB, que, ao longo da carreira, assinou 24 filmes. “Metade da minha produção foi realizada em Brasília. E passei aqui dois terços da minha vida”, resume.

 

Entre os destaques de sua filmografia estão O País de São Saruê (1971), prêmio especial do júri no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro; O Homem de areia (1981), prêmio do Conselho Nacional de Cinema (Concine);

 

Conterrâneos velhos de guerra (1990), multipremiado no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, incluindo o de melhor filme, em sua categoria , e O Evangelho segundo Teotônio (1984), Margarida de Prata pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

 

 

Ceilândia, região onde cresceu, é a alma do cinema crítico e inventivo de Adirley Queiroz, 49 anos. Responsável por várias obras premiadas, seu longa Branco sai, preto fica (2014) conseguiu a façanha de arrebatar 11 prêmios no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, incluindo o Troféu Candango de Melhor Filme. Dirigiu também Era uma vez Brasília (2017), prêmio principal na 15ª Mostra de Tiradentes; A cidade é uma só (2011), e o elogiado curta Rap, o canto da Ceilândia (2005).

Tornou-se cineasta graças ao (extinto) curso de Cinema concluído na UnB. Antes de entrar, a Universidade idealizada por Darcy Ribeiro, apesar de gratuita, parecia impossível ao jovem ceilandense. "A UnB, nos anos 1990, para mim, era uma fantasia. Moro em Ceilândia. Não era comum ter gente daqui na Universidade, que era muito mais elitizada naquela época", lembra. 

O cineasta Adirley Queiroz foi marcado pelo contraste de classes sociais na Universidade e que lhe proporcionou reflexão sobre território e privilégios. Foto: Cinco da Norte

 

Além do acesso aos equipamentos que lhe possibilitaram trabalhar, como câmeras, tripés e luzes, e do contato com a literatura de diferentes cursos, Adirley se diz marcado pelo contraste entre classes sociais que presenciou na Universidade e que lhe proporcionou maior reflexão sobre território e privilégios. “Antes da UnB, eu quase nunca tinha ido ao centro de Brasília. Com a passagem pela Universidade, levei esse olhar crítico de quem saiu da periferia e frequentou um ambiente elitista”. 

 

 

Antes de fazer shows por todo o país com sua banda Autoramas, Gabriel Thomaz, 48 anos, integrou o grupo brasiliense Little Quail and the Mad Birds (que também contava com Bacalhau, hoje baterista do Ultraje a Rigor). O trio roqueiro e debochado projetou o rock brasiliense dos anos 1990 no circuito nacional. No início daquela década, Gabriel cursou Sociologia na UnB. Recorda-se que o termo networking não era ainda usado na época, mas garante que a Universidade era ideal para isso, o que foi importante para sua carreira. 

Para o músico Gabriel Thomaz, a UnB foi importante espaço para fazer networking, passo importante em sua carreira. Foto: Divulgação

 

“A UnB sempre teve um ambiente muito livre, espaços para tocar. Fiz shows no Anfiteatro 9, no Minhocão [Instituto de Ciências Centrais], no CO [Centro Olímpico]. Também estavam lá muitos artistas, que mesmo que não fizessem cursos relacionados às artes, estudavam na UnB. Então sempre foi um ponto de encontro muito bom. Pessoas de outras bandas também frequentavam esses espaços. Como era difícil conseguir disco na época, o intercâmbio musical lá ajudou nisso também", rememora o músico que não chegou a se formar.

 

Atualmente, mora em São Paulo, onde, nas últimas duas décadas, gravou oito discos com sua banda Autoramas. No fim de 2018, o grupo foi homenageado com a coletânea A 300km por hora em que 41 músicos de 11 estados gravaram releituras de suas músicas.

 

 

"Aprendi muito com a convivência na UnB, com quem pensa diferente e parecido. Isso foi fundamental para a minha carreira", analisa Hamilton de Holanda, 44 anos. Aclamado mundialmente pelo virtuosismo no bandolim, o brasiliense se formou em Música na UnB.

 

Primeiro ingressou em Ciências Contábeis em outra faculdade, influenciado pela família. Percebeu, no entanto, que estava destinado a trabalhar com música e decidiu estudar na UnB. "Seria uma maneira de conviver com musicistas, com estudantes de outras artes e de outras áreas”. 

"A universidade, apesar de nos colocar pequenininhos diante do conhecimento, também nos coloca grandes diante da possibilidade de saber e de poder criar algo autêntico", acredita o bandolinista Hamilton de Holanda. Foto: Lívia Sá

 

Optou pelo curso de Música. “Como eu já tinha uma carreira de músico, aplicava o que estudava na minha maneira de compor, de fazer arranjo, de pensar". A experiência, conta ele, foi enriquecedora. “A universidade, apesar de nos colocar muito pequenininhos diante do conhecimento, também nos coloca muito grandes diante da possibilidade de saber e de poder criar algo autêntico”. 

 

Dentre muitos prêmios que recebeu ao longo da vida, Hamilton de Holanda é vencedor do Grammy Latino de 2016 de Melhor Álbum Instrumental. Também é autor de quase 40 discos produzidos entre 1997 e 2019. As obras incluem participações de Chico Buarque, Hermeto Pascoal, Diogo Nogueira, João Bosco, dentre vários outros.

 

 

Hugo Rodas, 80 anos, chegou à UnB no auge de sua carreira prolífica. O aclamado diretor de teatro uruguaio foi convidado, em 1987, para ser professor visitante do Departamento de Artes Cênicas e nunca mais desgarrou da veia universitária. “Não consigo me separar. Os alunos me transformaram. Só tenho a agradecer enormemente por toda experiência que tive durantes todos esses anos”, comenta o professor. Durante a carreira, passou por coletivos como o Grupo Pitú, o Tucan (Teatro Universitário Candango) e a Companhia dos Sonhos. 


"Não consigo me separa da UnB. Os alunos me transformaram. Só tenho a agradecer enormemente pela experiência que tive durantes todos esses anos", afirma o diretor de teatro Hugo Rodas. Foto: Arquivo Pessoal

 

Ele observa que trabalhou “com quase todo mundo da cena em Brasília”, já que muitos atores foram seus alunos e mantiveram as parcerias. “Dar aula mudou minha vida. É uma experiência muito diferente de dirigir atores. Uma coisa é o que faço por mim e outra é o que faço pelos outros, isso nos faz nos se relacionar de forma diferente com o trabalho e com a vida”, diz o mestre, que, se depender dele, jamais se aposentará das salas de aulas e dos palcos.

 

Em 2020, Hugo voltou dirigir O rinoceronte, que havia encenado em 2006.  Dentre os reconhecimentos de destaque estão o Prêmio do Serviço Nacional do Teatro (1977) por Os Saltimbancos e o Prêmio Shell (1997) por Dorotéia, que co-dirigiu com Adriano e Fernando Guimarães. Recebeu os títulos de Cidadão Honorário de Brasília (2000), Notório Saber em Artes Cênicas (1998) e de Professor Emérito da Universidade de Brasília (2014).

 

 

Liliana Oliveira, ou Lila, 34 anos, é artista visual formada em Arquitetura na UnB. Graduou-se em 2011, mas resolveu deixar de lado o diploma para viver de arte. A experiência na UnB, no entanto, foi determinante para o sucesso da empresa Alegrias Ilustradas, fundada por ela em 2015 em Brasília. Para a sua marca, ela cria produtos e presta serviços de ilustração. São itens de decoração, pôsteres, cartões, ímãs, zines, entre outras coisas. 


Para a artista visual, Liliana oliveira, a experiência na UnB foi determinante para o sucesso da sua empresa Alegrias Ilustradas.
Foto: Arquivo Pessoal

 

Dedica-se principalmente à aquarela. “Artisticamente sou muito influenciada pelo fato de ser arquiteta, como em elementos geométricos e eixos que desenho à régua. Por mais que meus desenhos não sejam de arquitetura, os métodos criativos que aprendi na Universidade me influenciam bastante”. Além da técnica adquirida, foi marcada pelo ambiente social propiciado pela UnB. Também destaca o seu repertório, resultado da passagem por disciplinas de diferentes cursos. “Minha mente ficou mais aberta, conheci pessoas novas e assuntos novos. Isso influencia nossa vida e consequentemente nossa arte”, comenta.

 

 

 

O arquiteto mineiro Luiz Jungmann Girafa, 69 anos, não nega a influência de sua formação universitária em sua arte, seja ela plástica, fotográfica ou cinematográfica. “A Universidade deu sustância a toda minha forma de pensar e de fazer, que mudaram completamente. Antes eu era boboca”, brinca. Os traços, que antes da experiência acadêmica, vivida nos anos 1970, eram esboçados de forma intuitiva, passaram por processo de amadurecimento. As técnicas apreendidas também mudaram a sua forma de pensar. 

"A Universidade deu sustância à minha forma de pensar e de fazer, que mudaram completamente. Antes eu era boboca", brinca o arquiteto e cineasta Luiz Jungmann Girafa. Foto: Arquivo Pessoal

 

“A universidade redimensionou o universo da arte em minha vida. Me deu contato com a arte mundial. As disciplinas que cursei transformaram minha maneira de pensar”. Além de aluno, trabalhou na UnB. Ilustrou, por anos, as antigas Revista Humanidades e Revista da UnB. Também participou de projetos da editora da Universidade e foi participante ativo de exposições e produções locais. “A UnB é importante não só para mim quanto para milhares de pessoas. É uma instituição ligada a história de Brasília”, comenta. Com apoio de edital de fomento à cultura (qual?), atualmente Girafa dirige seu quinto filme e primeiro longa-metragem, Enigma, que se passa na avenida W3 Sul em Brasília. 

 

 

“Um celeiro de ideias, de movimentos e de emancipação de jovens”. É assim que Maria Paula Fidalgo, 49 anos, define a universidade. A atriz, escritora e apresentadora tinha pressa de fazer parte da UnB: “Era um sonho que eu tinha desde criança. Sempre tive vontade de estudar naquele campus incrível, andar pelo Minhocão. Era super cultuado estar na UnB”.

 

Aos 16 anos, resolveu fazer o último ano do ensino médio em seis meses em um curso especial. Assim, realizou seu sonho de infância ao passar no vestibular da UnB aos 16 anos. Cerca de 30 anos depois, e uma agitada carreira na televisão em programas como Casseta e Planeta, da TV Globo, ela voltou a frequentar o campus Darcy Ribeiro. Tornou-se mestre em Psicologia em 2018. 


Para a atriz e escritora Maria Paula, a UnB é "um celeiro de ideias, de movimentos e de emancipação de jovens". Foto: Arquivo Pessoal

 

“A UnB me influenciou em todos os sentidos: minha personalidade, minha forma de educar meus filhos e minha carreira são frutos das sementes plantadas no campus dos meus sonhos. Fez de mim uma mulher super comprometida com meus projetos, aprofundando sempre as pesquisas de personagem e elevando o nível da minha escrita. A UnB representou um divisor de águas em minha vida: primeiro quando entrei jovenzinha e depois quando senti a necessidade de me reinventar e retornei para o mestrado,” diz a atriz.

 

Em 2016, recebeu o título de Embaixadora da Paz pelo Governo do Distrito Federal (GDF) graças a ações que promove em prol da construção de uma sociedade mais pacífica. Hoje se considera uma sortuda por morar em Brasília e segue fazendo palestras, trabalhando nos palcos, no cinema e escrevendo crônicas para periódicos.

 

Santiago Dellape, 37 anos, formou-se em dois cursos na UnB. Do jornalismo, tira o sustento como funcionário público. Do cinema, a paixão. Quando estava no ensino médio, a UnB parecia a opção acadêmica óbvia: “Pela excelência, por ser uma universidade pública gratuita e de qualidade”.

 

Na graduação, juntou-se a outros estudantes de jornalismo cinéfilos e criaram o coletivo Lumiô Filmes — que posteriormente virou empresa. “A UnB possibilitou esse encontro. Uma das melhores coisas da universidade é esse poder de criar relações. Depois desse coletivo, meu desejo por cinema fermentou e resolvi cursar cinema também”, diz.

O cineasta Santiago Dellape acredita que a UnB possibilitou o encontro com parceiros profissionais: "Uma das melhores coisas da Universidade é esse poder de criar relações". Foto: Luciana Melo

 

"Sinto que o fato de o curso de Cinema ter migrado do Instituto de Artes (IDA) para a Faculdade de Comunicação reverberou no meu trabalho, que costuma privilegiar a Comunicação", completa. De lá para cá, dirigiu produções como o longa A repartição do tempo (2018) e os curtas Meio expediente (2017), Ratão (2010), Nada consta (2006) e A Vingança da bibliotecária (2005), pelos quais conquistou mais de 40 prêmios, incluindo o de Melhor Filme pelo júri popular do Festival de Gramado em 2010 e menção especial na 37ª edição do festival português Fantasporto. Ele planeja voltar aos estúdios em breve