Artigo

Para celebrar os 120 anos de nascimento de Anísio Teixeira, a revista Darcy publica, com exclusividade, artigo dos professores Remi Castioni (UnB) e João Augusto de Lima Rocha (UFBA) sobre o legado ímpar do educador baiano, que idealizou a UnB

 

“Educar é crescer. E crescer é viver. Educação é, assim, vida no sentido mais autêntico da palavra", Anísio Teixeira (1900 – 1971). Foto: divulgação

 

O novo projeto totalmente on-line da revista Darcy traz, a cada semana, matérias inéditas como parte das comemorações do aniversário da UnB e de Brasília, além de série sobre o projeto de extensão Vivência Amazônica. A luta pela educação pública universal e gratuita é o sexto texto do novo projeto.

 

No dia 12 de julho de 1900, nascia, em Caetité, na Bahia, Anísio Teixeira. Ao lado de Darcy Ribeiro, ele idealizou o projeto da Universidade de Brasília. Os dois pensadores imaginaram, desenharam e implantaram a UnB. Ainda no Distrito Federal, Anísio Teixeira teve papel importante ao estabelecer o sistema de educação pública do DF. Foi ele também que incluiu o conceito pioneiro de escolas-parque, que funcionavam em complementação às escolas básicas com atividades de educação física e artes. O fato é que a educação pública de qualidade sempre moveu o educador baiano.

 

Como retratou a revista Darcy número 23, na matéria Pioneiros, uma das inovações da UnB proposta por Anísio foi a extinção das cátedras: “os professores e os alunos passaram a ter maior autonomia e liberdade para circular pelos departamentos, identificando-se com os vários setores do conhecimento e ampliando a experiência acadêmica. A proposta inspirou outras universidades criadas posteriormente, como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)”.

 

Para celebrar os 120 anos de seu nascimento, João Augusto de Lima Rocha, professor titular aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro da Fundação Anísio Teixeira, e 

Remi Castioni, professor da Faculdade de Educação da UnB e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Anisio Teixeira (GEPAT), publicam, com exclusividade no site da revista Darcy, o artigo a seguir em que revisitam as principais obras de Anísio Teixeir e seu legado para a educação brasileira.

 

>> Por conta das comemorações dos 120 anos de nascimento de Anísio Teixeira, a Casa Anísio Teixeira está promovendo série de lives, cuja programação pode ser acessada aqui

 

Direito e privilégio na educação – a formulação de Anísio Teixeira nos 120 anos de seu nascimento

 

Texto João Augusto de Lima Rocha e Remi Castioni

 

O ano de 2020 foi declarado pelo Estado da Bahia, como o Ano Anísio Teixeira. Na comemoração dos 120 anos do seu nascimento, fazemos uma reflexão sobre as suas principais obras. 

 

Segundo Florestan Fernandes, no livro Anísio em Movimento (1992), Anísio Teixeira foi o mais importante educador e filósofo da educação que o Brasil produziu. Ao analisarmos sua vasta e extensa obra, não há demérito algum aos demais em afirmar que foi ele quem forneceu os principais subsídios para a formulação da luta pela educação pública, universal e gratuita no Brasil.

 

Nesta retrospectiva sobre as obras essenciais do autor, há uma afirmação, ainda pouco compreendida, particularmente entre nossos educadores, de que educação não é privilégio. Neste percurso, vamos enfrentar esta formulação a partir de seus mais importantes textos.

 

O primeiro livro publicado por Anísio Teixeira é de 1927, Aspectos Americanos de Educação, onde ele já demonstra o quanto foi influenciado pelo contato com o Teachers College da Universidade Columbia, onde pontificava John Dewey.

 

O livro seguinte, Escola Progressiva (uma introdução à Filosofia da Educação), que apareceu entre 1932 e 1934, é lançado depois da divulgação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932. Trata-se de uma obra em que o autor enfrenta com destemor a questão da necessidade da separação entre a Igreja e o Estado no Brasil, particularmente no que se refere àeducação. Para ele, essa seria uma condição para que a conexão entre democracia e escola pública se produzisse sem quaisquer amarras. Mesmo tendo sido incluído na primeira Constituição da República (1891), o dispositivo que estabelecia a separação entre Igreja e Estado encontrou grande dificuldade de aplicação no Brasil.

 

Anísio Teixeira, egresso de escolas jesuíticas, que formaram seu caráter intelectualmente rigoroso e disciplinado, começou a sua atuação no cenário da educação nacional em meados da década de 1920. Recém formado em Direito, foi nomeado Inspetor Geral do Ensino na Bahia, em abril de 1924, aos 23 anos de idade. Ele se junta a outros dirigentes estaduais da educação, do Ceará, de Pernambuco, São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, principalmente, empenhados em implantar no Brasil o movimento Escola Nova, que já havia despontado em diversos países. Esses educadores estaduais empregaram todos os esforços para mobilizar setores democráticos da nação, a fim de ampliar as oportunidades de educação pública universal e gratuita em nosso país.

 

Foi Anísio Teixeira quem forneceu os principais subsídios para a formulação da luta pela educação pública, universal e gratuita no Brasil. Foto: CPDOC/FGV

 

Com o advento da Revolução de 1930, os próceres desse movimento político fizeram dois movimentos: um, no sentido de se aproximar desses educadores renovadores, para colocá-los a seu serviço, e o outro, em sentido contrário, para neutralizar a Igreja, que havia nomeado o católico Francisco Campos, para assumir o recém-criado Ministério da Educação e Cultura. Este reinstaurou o ensino religioso, e aumentou os recursos públicos para a manutenção das escolas particulares, a maior parte delas nas mãos da Igreja.

 

Exílio

O primeiro ataque contra Anísio Teixeira aconteceu entre 1931 e 1935, quando ele dirigiu a educação no então Distrito Federal (Rio de Janeiro), durante a gestão do Prefeito Pedro Ernesto. Forçado a se demitir em dezembro de 1935, Anísio foi alijado da área de educação e exilado em seu próprio país, de 1936 a 1945; no início, em completa clandestinidade, escondido na zona rural da Bahia, perto de sua cidade natal, Caetité, e depois, como empresário bem-sucedido no ramo comercial de importação e exportação.

 

O enfrentamento da Igreja contra Anísio Teixeira continuou em 1951, quando terminou seu exitoso mandato de Secretário de Educação e Saúde, na Bahia, em plena discussão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Essa lei foi aprovada em 1961, mas, antes disso, em 1958, a Igreja reconheceu, publicamente, que foi derrotada nos embates com Anísio, que terminou por vencer a dura batalha travada contra a cúpula católica, empenhada em evitar a redução de sua influência na educação. Aquela já era a segunda vez em que os católicos acionaram sua força total contra as ideias do educador em defesa da escola pública universal e gratuita. 

 

A obra Escola Progressiva chocou de tal modo a cúpula da Igreja, que chegou a ter sua leitura proibida aos católicos, por decisão do Vaticano, segundo atesta o frei Paulo Evaristo Arns,no artigo Anísio versus Igreja, divulgado em diversas publicações católicas, particularmente na edição de junho de 1958, da Editora Vozes, de Petrópolis. No citado artigo, referindo-se à obra censurada, revela o frei Arns: "Desejaríamos que todos os intelectuais, católicos ou não, lessem esse capítulo. Por mais calejados que fossem, indignar-se-iam contra o método e a leviandade extrema do autor em julgar o passado. Mas, pelo C.I.C, Canon 1399, 2º, a leitura da obra Educação Progressiva, 'está ipso jure proibida'". 

 

Mais tarde, são lançados dois outros livros de Anísio, que também marcaram época. O primeiro, Educação não é privilégio, é publicado em 1957, e o segundo, Educação é um Direito, sai dez anos depois, isto é, em 1967. Os livros decorrem de duas palestras que já haviam sido publicadas antes, em 1956, no volume 26, nºs. 63 e 64 da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, a RBEP, o periódico mais antigo da área da educação, a cargo do INEP. Na segunda edição do Educação não é Privilégio, que sai em 1968, pela Cia. Editora Nacional, Anísio introduz tabelas, novos dados e comentários ao texto original da conferência de 1953, e também um novo capítulo intitulado Educação e a formação nacional do povo brasileiro

 

No ano anterior, 1967, havia saído a primeira edição da outra obra, Educação é um direito, também pela Cia Editora Nacional. O autor refere-se a ela como "a outra face do Educação não é privilégio". Percebe-se, portanto, a prioridade dada por ele a esta última obra. Numa das palestras, contida no Educação não é privilégio, afirma Anísio:

 

Obrigatória, gratuita e universal, a educação só poderia ser ministrada pelo Estado. Impossível deixá-la ser confiada a particulares, pois estes somente podiam oferecê-la aos que tivessem posses (ou a protegidos) e daí a operar antes para perpetuar as desigualdades sociais, que para removê-las. A escola pública, comum a todos, não seria, assim, o instrumento de benevolência de uma classe dominante, tomada de generosidade ou de medo, mas um direito do povo, sobretudo das classes trabalhadoras, para que, na ordem capitalista, o trabalho (não se trata, com efeito, de nenhuma doutrina socialista, mas do melhor capitalismo) não se conservasse servil, submetido e degradado, mas igual ao capital na consciência de suas reivindicações e dos seus direitos.

 

Modelo educacional

No livro Educação é um direito, Anísio estabelece, com detalhes, os fundamentos da filosofia de Dewey relacionados com a tese de que a democracia é condição essencial para a implantação e consolidação da escola pública universal e gratuita. Em sua fidelidade aos fundamentos de Dewey e Kilpatrick, ele se esmera em buscar, com elevada autonomia intelectual, os elementos concretos para a construção de um modelo educacional apropriado à formação social, econômica e cultural do Brasil. Pretende reunir e liderar as forças vivas da nação para integrar os aspectos essencialmente educacionais com os aspectos político-institucionais, a fim de que a consolidação da democracia sirva de suporte para a afirmação da escola de formação comum, enfeixada na expressão escola pública universal e gratuita.

 

Anísio vai buscar a origem da formulação da ideia de escola comum, em pleno séculoXVII, nas colônias norte-americanas, em que se estabelece o fundamento segundo o qual a educação é um direito individual, não coletivo, assegurado, no contexto do século XVII, por meio de uma curiosa lei, chamada Lei do Velho Enganador, Satanás de 1647, oriunda da colônia de Massachusetts. No Educação é um direito, Anísio interpreta os termos originais dessa curiosa lei, afirmando: "Cumpre salientar, nesses primórdios do estabelecimento da educação como interesse público, o fato de ser a educação considerada uma necessidade individual e não apenas uma vantagem". 

 

A compreensão é de que o direito individual, se não estiver universalizado, torna-se um privilégio. Anísio soube interpretar muito bem essa asserção, ao insistir que, antes de se afirmar que a educação é um direito, tem-se de insistir que não pode se tornar um privilégio, senão, não será um direito. Isto quer significar, também, que educação não é simplesmente um direito de todos e um dever do estado, tal como está na nossa progressista Constituição de 1988, mas um direito de cada indivíduo, na democracia. A expressão direito de todos pode até parecer mais avançada, porém não o é, simplesmente porque, a afirmação de que a educação é um direito da coletividade abre brecha para que a parte da elite contrária à educação pública possa se utilizar de certos estratagemas muito sutis, para negar o direito individual à educação.

 

No Brasil, a escola única é uma conquista bem mais recente. Formalmente, é uma conquista da Constituição de 1946, que somente foi implantada, mesmo assim gradualmente, após a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1961.

 

Singularidade

Anísio foi a principal liderança nessa longa luta, a qual lhe rendeu duros ataques dos setores conservadores, somados aos que já havia experimentado antes, em 1935, quando teve de se demitir, à pressas, da direção da educação do Distrito Federal, sob o governo do prefeito Pedro Ernesto, temendo ser preso, acusado de comunista. Ele se livrou da prisão, no entanto, o prefeito Pedro Ernesto perdeu o cargo e foi preso, em abril de 1936. Em seu lugar, foi empossado o Padre Olímpio de Menezes Melo.

 

A singularidade de Anísio, enquanto educador e filósofo da educação, está em que, para ele, a luta pela democratização da educação e pela democratização da sociedade, auxiliada pela generalização da educação, pública e gratuita, não pode prescindir da luta contra a consideração do ensino público como vantagem individual, isto é, como privilégio. Por esse motivo é que acreditamos ser Educação não é privilégio a obra-prima de Anísio Teixeira. Os outros grandes educadores brasileiros consideram a expressão educação é um direito de todos como sinônimo de educação não é privilégio, mas Anísio demonstrou, e atuou no sentido de mostrar que, na democracia, a educação, além de ser um direito de todos, também não é privilégio, isto é, uma afirmação não é igual à outra. De fato, elas são complemantares e ambas necessárias, em uma democracia.

 

Ainda pouco conhecido, não somente pelos estudantes, como também pelos professores e políticos de nosso país, o livro Educação não é privilégio aprofunda questões que devem merecer, sempre, grande e especial destaque, não somente entre os acadêmicos, mas também entre os administradores públicos, enfim, entre todos os movimentos organizados da sociedade que lutam pela democracia e pelo fortalecimento da escola pública.

 

Plano Nacional de Educação

Em síntese, na obra Educação não é privilégio, Anísio dedicou-se a analisar, também em profundidade, o desdobramento do processo de luta pela democratização da educação em nosso país, que resultou no surgimento, em 1962, do I Plano Nacional de Educação (I PNE), nascido sob sua inspiração, previsto para ser aplicado de 1963 a 1970. De fato, para ficar coerente com a planificação trienal do Governo João Goulart, conduzida por Celso Furtado, o I PNE foi subdividido, ficando a primeira parte para ser aplicada de 1963 a 1965.

 

Em 1963, após aprovado pelo Conselho Federal da Educação, em que Anísio foi o relator, a aplicação do I PNE começou a ser realizada, com todo vigor, mas foi bruscamente interrompida, pelo golpe militar de abril de 1964.

 

Outro retrocesso na educação, nos moldes do vivenciado por Anísio Teixeira, ocorreu também em 2016, quando gradativamente o Plano Nacional de Educação, sancionado dois anos antes, começou a ser descaracterizado. Por isso, precisamos conhecer com mais profundidade a experiência exitosa na luta pela escola pública travada pelos renovadores da educação; em particular, o extenso e profundo trabalho de Anísio Teixeira, a fim de levarmos à frente, sempre, a eterna luta pela educação pública universal e gratuita.