Reportagem

Na segunda matéria da série, repórter da Darcy, que acompanhou viagem de estudos, narra situação precária de ribeirinhos após saída de madeireiras e constata que articulação social é saída para mudar cenário. Não perca também o segundo podcast do projeto, que será lançado aqui nesta quarta-feira (29)

 

Participantes da quarta Vivência Amazônica estiveram em três comunidades ribeirinhas de Breves (PA), na Ilha do Marajó, para dialogar com a população e saber mais sobre os desafios enfrentados nesses locais. Foto: Serena Veloso/Secom UnB

 

O novo projeto totalmente on-line da revista Darcy traz, a cada semana, matérias inéditas como parte das comemorações do aniversário da UnB e de Brasília, além de série sobre o projeto de extensão Vivência Amazônica. Viagem a uma Amazônia desassistida é o oitavo texto do novo projeto.

 

Texto Serena Veloso

 

Estimada como a maior reserva de madeira tropical do mundo, a Amazônia enfrenta as consequências da derrubada irresponsável de árvores para uso industrial. Em 2019, o desmatamento atingiu 9.165,6 quilômetros quadrados da floresta, crescimento de 85,3% comparado ao ano anterior. A degradação – desequilíbrio no funcionamento do ecossistema devido a perturbações externas, como incêndios e extração da madeira – é outro aspecto preocupante e influi em perdas qualitativas para o bioma.

 

Além do meio ambiente, os povos da floresta são os grandes atingidos pela movimentação da madeira na região. Exemplo de como a chegada das indústrias do segmento interferiu drasticamente na vida da população local foi observado pelos participantes do projeto de extensão da UnB Vivência Amazônica nas vilas Intel I e II e Magebras, situados no município de Breves, no estado do Pará. 

 

 Municípios de Breves e Portel, no Pará, foram algumas das localidades visitadas durante o projeto de extensão Vivência Amazônica. Arte: Francisco George Lopes / Secom UnB

 

O projeto é parte da disciplina Tópicos Especiais sobre a Amazônia, coordenada pelo Núcleo de Estudos Amazônicos do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Neaz) e inclui uma viagem de estudos à maior floresta tropical do mundo. O objetivo da iniciativa é aproximar a comunidade acadêmica da realidade dos povo que habitam a Amazônia. 

 

A expedição aconteceu durante 21 dias do mês de dezembro de 2019. Reuniu estudantes, docentes e técnicos administrativos da UnB, numa jornada para “reduzir o estranhamento, se deparar com outras realidades e desafios, e voltar mais interessados pela Amazônia”, como define o professor Manoel de Andrade, coordenador do Neaz. Revista Darcy e UnBTV acompanharam a viagem.

 

Desafios visíveis

A ida às comunidades requisita logística própria: é necessário navegar pelo rio Parauaú. No curso das águas, o calor de castigar é recompensado pela paisagem composta de florestas densas e esparsas moradias ribeirinhas. A presença de madeireiras e áreas desmatadas também deixam marcas em meio ao verde preponderante. 

 

A primeira vista à vila Intel I é de impressionar. Palafitas habitações sobre estacas de madeira construídas às margens dos rios sem pintura, entremeadas à vegetação amazônica, conferem à paisagem estética única. Ao aportar, os viajantes se reúnem para uma breve aula antes de dialogar com os ribeirinhos.

 

Coordenador do projeto Redes Comunidades Ribeirinhas, o professor Eunápio Dutra (centro), da Faculdade de Serviço Social da UFPA, introduziu os viajantes à situação das comunidades ribeirinhas, com a instalação de uma empresa madeireira na região. Foto: Serena Veloso/Secom UnB

 

Convidado para intermediar o encontro, Eunápio Dutra, professor de Serviço Social da Universidade Federal do Pará (UFPA), faz um retrospecto da implantação da indústria madeireira nas três vilas. Celeiro mundial da madeira na década de 1980, a região atraiu empresas internacionais para exploração do recurso. Os efeitos da atividade econômica foram drásticos em âmbito ambiental e também para os nativos.

 

Eunápio menciona como consequências críticas a mudança na cultura de manejo da alimentação, a introdução de doenças, a desestruturação social e econômica pela imposição de novas lógicas de sobrevivência e o inchaço populacional das vilas devido à migração de trabalhadores. “As comunidades tiveram que continuar existindo, resistindo e se adaptando às transformações trazidas por esse modelo econômico”, analisa o professor.

As questões se prolongaram após o fechamento das madeireiras nos anos 2000. “Vocês estão numa vila onde as pessoas passam fome. Antes, elas tinham suas criações de animais. Hoje, vivem do Programa Bolsa Família e a maior parte está desempregada”, alerta aos acadêmicos.

 

Diferenças que somam

Cabelos castanhos com pontas azuis, vestido marrom com mandalas, short jeans e chinelos nos pés. A estudante da UnB de Gestão de Políticas Públicas Lara Noblat, 21 anos, caminha intrigada pelas construções de madeira com paredes e pintura desgastadas. Acompanham-na rapazes e moças com cabelos semi-raspados e coloridos; piercings espalhados por seus rostos e tatuagens em diferentes partes do corpo. O visual dos jovens contrasta com a simplicidade dos ribeirinhos. 

 

Apesar das diferenças culturais, o encontro entre estudantes e nativos evidencia o exercício de empatia para dimensionar os entraves enfrentados por quem ali vive, mas também para extrair o que a realidade do outro tem a ensinar.  “Você só vai saber da realidade brasileira se for aos lugares e falar com as pessoas. Se você só falar com as pessoas da sua classe ou do seu contexto, não vai ter noção real do que é o mundo”, pondera Lara, que está prestes a concluir seu curso.

 

A primeira parada do grupo é em uma escola de ensino básico. Sorrisos de crianças e professoras disfarçam as mazelas de um lugar legado ao descaso. As deficiências na estrutura, com poucas salas de aula para receber alunos de diferentes níveis de ensino, são apenas um dos problemas flagrados pelos visitantes.

 

Atenta ao cenário, Lara registra as impressões iniciais da visita. As anotações feitas por ela e outros estudantes contribuem para consolidar informações para o diário da viagem e um livro a ser produzido sobre os diálogos com as lideranças das comunidades visitadas. Fotografias e gravações audiovisuais ajudam a documentar e dar visibilidade à experiência.

 

Engajamento social 

“Antes, trabalhávamos de empregados na empresa que ficava aqui ao lado e vivíamos uma vida um pouco diferente. Hoje, nossa qualidade de vida está um pouco difícil por falta de emprego”, lamenta Mateus de Moraes, morador da Vila Intel I. O relato do líder comunitário sobre os desfechos da saída de uma madeireira da região foi compartilhado em roda de conversa com o grupo da UnB. 

 

Mateus trabalhou na empresa por 13 anos até ela ser desativada. Há três anos desempregado, restou-lhe a labuta na roça. Outros recursos antes abundantes ali, como pescados e caça, poderiam fornecer o sustento à sua família, mas tornaram-se escassos devido aos agravos ambientais da exploração da madeira.

 

O rapaz foi trazido para a vila quando criança. Os pais foram atraídos pela oportunidade de emprego na madeireira. Mateus lembra que estruturas como escola, moradias e unidade de saúde foram instaladas e mantidas por interesse da empresa, o que movimentou grande número de pessoas ao local. No entanto, após a interrupção das atividades comerciais, a população ficou desassistida. 

 

Desemprego e falta de infraestrutura adequada para escola e posto de saúde locais foram questões denunciadas pelos moradores das comunidades ribeirinhas de Intel 1, Intel 2 e Magebrás aos visitantes. Foto: Serena Veloso/Secom UnB

 

Os moradores veem na articulação social caminho para mudar o cenário. Resultados desse engajamento já podem ser vistos na interação com a UFPA, por meio do programa Redes Comunidades Ribeirinhas. A iniciativa é da Faculdade de Serviço Social do Campus de Breves da UFPA, sob a coordenação do professor Eunápio. O projeto, composto por estudantes, professores, técnicos e voluntários amazônidas, busca aproximar a instituição da realidade local e estimular a participação social dos ribeirinhos. Inclui mutirões, atividades culturais, educativas e oficinas.

 

Com apoio do projeto, os moradores conseguiram mobilizar um mutirão para iniciar a revitalização de 800 metros de pontes de madeira, usadas para o deslocamento de mais de 50 famílias na Vila Intel II e Magebras. Batizado de Pontes de Verdade: Por Direitos e Dignidade, a iniciativa mostra o tamanho da importância das pontes para a população, que decidiu priorizar justamente essa reforma. As estruturas precárias causam acidentes e dificultam a movimentação dos moradores, impedindo até crianças de chegar à escola. 

 

Líder da comunidade católica de Magebras, Márcia Brandão conta que o auxílio tem sido essencial na busca por melhores condições de vida. “Passamos a nos organizar depois que o pessoal da universidade veio nos mostrar nossos direitos. Em Magebras, unimos católicos e evangélicos nessa luta”, diz. 

 

Em ruínas

A passagem por Intel II e Magebras deixa mais evidente a precária infraestrutura da região. Mal é possível caminhar pelas pontes de madeira deterioradas que ligam as humildes residências. O único posto de saúde que atende as três vilas está ruindo, não possui equipamentos médicos, além de contar com apenas uma profissional de saúde. 

 

Na vila Intel 2, pontes de madeira que interligam as casas, construídas sobre palafita, estão em estado precário. Para ajudar a comunidade na recuperação da estrutura, projeto da UFPA realizou mutirão para manutenção de 800 metros das pontes. Foto: Serena Veloso/Secom UnB

 

Por trás das lentes fotográficas da estudante Larissa Machado, a expressão é de apreensão. Sensibilizada, ela reflete sobre as consequências da ausência de políticas públicas nas vilas marajoaras. “A madeireira mobiliza a população para ocupar esses espaços, proporciona alguns bens e serviços e, dado o fim do seu ciclo naquele local, simplesmente abandona toda aquela lógica. A comunidade se vê totalmente de mãos atadas”, inquieta-se a jovem, que também nota a importância da aliança desses povos na luta por seus direitos. 

 

O choque de realidade se ameniza com mergulho em águas doces naquela tarde ensolarada, antes de retomar o caminho para Breves. Minutos preciosos para se refrescar e contemplar aquele paraíso em meio ao caos.

 

Vivência em áudio

Nesta quarta-feira (29), entra no ar o segundo episódio do podcast Amazônia Além da Floresta, que relata com mais detalhes a experiência vivida por estudantes, docentes e técnicos da UnB durante as atividades da quarta edição da Vivência Amazônica. Neste episódio, o ouvinte terá um panorama dos desafios vividos pela população da Ilha do Marajó e da situação de Breves diante do avanço da pandemia da covid-19.

 

A série Amazônia Além da Floresta é uma produção da Darcy, por meio da Secretaria de Comunicação da UnB, com apoio do Núcleo de Estudos Amazônicos do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Neaz/Ceam/UnB). Escute o podcast no SpotifySoundCloud e Anchor.

 

>> Não deixe de ler, segunda-feira que vem (03/08), aqui no site da Darcy, a terceira e última parte da reportagem que acompanhou o projeto de extensão da UnB Vivência Amazônica.